Luz nos insetos: expedição científica brasileira revela riqueza da biodiversidade do Sul do Chile
Pesquisadores brasileiros e chilenos desenvolvem estudos sobre a biodiversidade de insetos local e suas conexões com outros lugares do mundo; preservação e educação ambiental da comunidade estão entre as prioridades
Na Região dos Lagos, a 830 quilômetros de Santiago, Chile, uma pequena mosquinha passa voando na floresta temperada úmida. É a Puyehuemyia chandleri, um ser vivo em toda sua complexidade e importância para o equilíbrio ecológico e também um símbolo que dialoga com a cultura local e a educação das novas gerações para a preservação ambiental. Descrita em 2017, Puyehuemyia foi batizada em referência ao local onde foi descoberta, o Parque Nacional Puyehue.
A coleta do inseto foi feita pelos biólogos Dalton Amorim e Vera Silva, pesquisadores brasileiros que lá desenvolvem um estudo sobre a biodiversidade de insetos e suas conexões. Após outras viagens ao local, eles passaram dias por lá novamente em expedição juntamente com José Albertino Rafael, entre novembro e dezembro de 2022. Parte das atividades foi acompanhada pelo Jornal da USP.
“A evolução dos insetos tem algumas centenas de milhões de anos e a gente quer fazer um recorte para estudar essa fauna do Sul do Chile que tem a ver com os últimos cem milhões de anos, que é a evolução do Sul da Gondwana [continente antigo que unia as atuais África, América do Sul, Antártida, Índia e Austrália]. A fauna do Sul do Chile e da Argentina tem relações históricas com a Nova Zelândia, com a Austrália e secundariamente com o Sul do Brasil. Então, para a gente entender como evoluíram vários grupos importantes que só existem nessa parte do planeta, precisamos de uma boa amostragem desta região. Conhecendo bem esta fauna a gente vai até entender um pouco dos elementos que estão no Sul da Mata Atlântica, que têm relação com essa fauna do Chile”, explica Dalton Amorim, que é professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.
Mais do que buscar as conexões entre continentes do presente e do passado, outros aspectos explicam por que entomólogos (estudiosos de insetos) brasileiros saem do País para estudar a fauna de insetos chilena. “A entomologia brasileira é uma das melhores do mundo e a gente tem um grupo enorme de pesquisadores altamente qualificados publicando em revistas internacionais na área. Então é muito mais fácil para o Brasil com a sua equipe trabalhar em colaboração com os entomólogos do Chile para tocar um projeto como esse, que precisa de pessoal, logística, financiamento, articulação”, diz Amorim.
Mas tudo é feito com extremo cuidado para respeitar a autonomia da ciência e a da comunidade local. “Trabalhamos com pesquisadores chilenos que também estudam insetos, e assim podemos resolver problemas importantes de grupos que são exclusivos da parte temperada da América do Sul. E a parte mais importante do material que coletamos será, depois, devolvida para o Museu de História Natural de Santiago, enquanto que museus e instituições do Brasil terão amostras disponíveis para estudos”, detalha.
Vera Silva explica que a última grande coleta que foi feita na região, em 1924, resultou num trabalho muito importante, com uma série de publicações do Museu Britânico, mas esse material agora se encontra todo no Museu de História Natural de Londres. “Então, um dos outros objetivos que nós temos é, em colaboração com os pesquisadores do Museu de História Natural de Santiago, desenvolver uma coleção local dessa fauna. Que seja identificada, que tenha sido trabalhada, e que esteja disponível para os investigadores não só chilenos, mas de toda América do Sul e de outros países”, diz a entomóloga, que é professora aposentada da Unesp Jaboticabal.
Especializada em dípteros (moscas e mosquitos), ela conta que os insetos deste grupo que ocorrem na região “são muito especiais”, e a Puyehuemyia foi uma descoberta importante, porque era uma espécie de uma família não conhecida para o Hemisfério Sul. “E nós já temos mais dados que indicam outras espécies novas, de várias famílias, que também ocorrem apenas nesta região”, anima-se a pesquisadora.
Das coletas às coleções
Durante praticamente todos os dias de expedição, os pesquisadores fizeram coleta com redes entomológicas e também trabalharam com diferentes armadilhas para captura de insetos nos mais variados ambientes, com graus variados de dificuldade de atuar – incluindo algumas subidas íngremes, roupas encharcadas, risco de quedas – e, enfim, quedas.
“Há um milhão e cem mil espécies descritas hoje de insetos e cada uma tem sua própria biologia. Alguns insetos vivem dentro d’água em lagos; tem espécies cujas larvas vivem em rios, em riachos, em poças; alguns comem folhas vivas, outros comem folhas apodrecendo; outros comem cadáver… Para um levantamento extensivo a gente precisa explorar os vários micro-habitats. Buscamos amostras desde lá do vale, da sede do Parque Nacional, a 400 metros de altitude, até espécies que vivem no limite da vegetação, lá no alto de vulcões, quando acaba a vegetação e começa a haver só pedra vulcânica”, diz Dalton Amorim.
Além da dificuldade de acesso a alguns locais, as armadilhas são uma questão à parte: são necessários diferentes dispositivos e métodos para obter amostras dos variados grupos de insetos. O desafio é enfrentado com ajuda de um grande especialista no assunto, José Albertino Rafael, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) que também compôs o grupo da expedição.
“Em campo, utilizamos vários tipos de armadilhas para coletar a maior diversidade possível. São armadilhas com esforço direto do coletor, que é o método ativo, ou armadilhas que a gente coloca no mato, no método passivo. Há armadilhas que a gente põe no nível do solo e aquelas que a gente coloca no nível da copa das árvores, o chamado dossel. Então, por exemplo, temos uma armadilha de interceptação de voo para a qual o inseto não é atraído; ele encontra um obstáculo, tem a tendência de subir para um lugar claro, e acaba caindo num frasco coletor. Mas também temos armadilhas com substâncias químicas que simulam matéria orgânica em decomposição, como o vinagre, que é ácido, para atrair grande quantidade de insetos. Utilizamos ainda as cores, como amarelo, azul, vermelho e branco. Para coletas noturnas, nós usamos diferentes fontes de luz. E existem armadilhas que, ao contrário, têm fototropismo negativo, para os insetos que fogem da luz: eles batem no obstáculo e caem em bandejas colocadas na parte de baixo da armadilha. Então os diferentes insetos são capturados e a gente vai separando os grupos do nosso interesse”, descreve Rafael.
Mas as coletas são só o começo de um extenso e prolongado trabalho, como explica Dalton Amorim. “Depois das coletas vamos entrar na segunda fase do projeto. O material que a gente recolheu nestes últimos anos soma cerca de um milhão de espécimes. Daí vem o processo de transformar essa massa de material em algo disponível para os especialistas. Isso significa separar um por um de cada um desse milhão de exemplares: ‘isso é besouro, isso é abelha, isso é vespa, isso é formiga, isso é mosca, isso é gafanhoto…’ E depois de separar as ordens, separar cada uma das mosquinhas, por exemplo, em até 70 famílias diferentes. Quando o material estiver dividido em famílias, aí sim pode ser enviado a especialistas que queiram trabalhar com ele.”
Amorim defende a relevância das coleções biológicas como a que estão ajudando a formar. “Tem uma incompreensão muito séria na percepção pública e da própria comunidade científica sobre coleções biológicas. Elas são confundidas, inclusive por cientistas, com um hobbie. Da mesma maneira que existe coleção de latinha de cerveja e coleção de carrinho comprado em posto de gasolina, as pessoas acham que coleções biológicas são quase que uma distração de pesquisadores dessa área. Elas falam ‘coleção de bichinhos’, e na verdade esse é um grande equívoco.”
O entomólogo diz que, em ciência, “reprodutibilidade é tudo, e só é possível confirmar certas construções de hipóteses reexaminando as fontes de evidência utilizadas em primeira instância”. De acordo com ele, as coleções biológicas dão segurança para uso de nomes em todo o reconhecimento da diversidade biológica, são a fonte de informação para iniciativas de conservação e são ainda a base para a construção de hipóteses sobre evolução biológica ao longo de milhões de anos. “Sem coleções científicas você não tem como conferir se as afirmações foram corretas ou não. Elas não são um gasto, mas investimento na construção de hipóteses de evolução biológica. Os museus de história natural são fundamentais para que a gente tenha uma compreensão adequada da evolução.”
Vera Silva aproveita para ressaltar a importância da área da sistemática em si dentro da biologia. “O nome de uma espécie ajuda na comunicação inequívoca entre os pesquisadores. Quando eu falo da espécie Musca domestica, por exemplo, esse nome serve para o mundo inteiro. Mas não é só isso. A sistemática e a taxonomia contribuem para conhecermos a evolução e as relações entre as espécies, e isso por sua vez vai nos ajudar em estudos de comportamento, na pesquisa de fármacos, de princípios ativos… em várias pesquisas, tanto básicas quanto aplicadas. A sistemática é uma ciência muito importante para todas as áreas das ciências da vida.”
Parque Nacional Puyehue
Parte das coletas da expedição foi feita nos limites do Parque Nacional Puyehue, local de floresta temperada úmida com natureza exuberante. Ricardo Cárdenas, administrador do parque, conta que o local, com 112 mil hectares, faz fronteira com outros parques nacionais. “Portanto, aqui se conserva uma grande biodiversidade de bosques, flora, fauna, e montanhas nevadas que produzem a água dos lagos que temos. É uma área muito inalterada, e que está englobada em uma Reserva da Biosfera, o que significa que são mais de dois milhões de hectares que se protegem nesta zona.”
Ele diz que a importância do parque em particular está relacionada à proteção das bacias hidrográficas e ao bosque sempre verde, que se denomina floresta valdiviana. “É uma selva impenetrável e com muitos setores com muita precipitação. Isso também torna a região atrativa tanto para os turistas nacionais como estrangeiros”. Cárdenas menciona que são cerca de 130 mil visitantes por ano que ocupam várias regiões do parque, seja em busca das águas termais, nascentes ou bosques e trilhas, seja atraídos pelas estações de esqui – lembrando que a região também é atravessada por uma rota internacional que vai até Bariloche, na Argentina.
“A biodiversidade aqui é muito rica em flora, com árvores centenárias, de até 800, 900 anos. É uma floresta que sempre esteve aqui, e fomos descobrindo. Também porque as árvores estão em lugares muito estratégicos na cordilheira, onde se protegem praticamente sozinhas. Mas o nosso objetivo, como guarda-parques, é atender o visitante, educá-lo e informá-lo sobre a importância do porquê disso estar aqui, que é um patrimônio da humanidade, que devemos proteger e preservar”, diz Cárdenas, ao mencionar também a importância da articulação com cientistas. “Buscamos associar-nos com a academia, que são os pesquisadores, para que eles realizem estudos e revelem o estado da nossa biodiversidade, isto é, como se encontram a flora e a fauna, sobretudo nos últimos anos com os efeitos das alterações climáticas, que também já se notam aqui”, diz, referindo-se à redução na quantidade de chuva que vem sendo registrada nos últimos 15 anos, e “que em algum momento afetará essa natureza, que é uma selva perene devido à grande umidade”.
Extensão
Um grande diferencial do projeto empreendido no Chile são as atividades de extensão feitas com alunos das escolas da região. “A nossa intenção com eles é não só desenvolver a consciência do que nós estamos fazendo, ou seja, ‘o que esses cientistas de um outro país estão fazendo aqui’, mas também que aprendam a olhar o parque de uma outra maneira, que tenham um olhar novo sobre algo já conhecido”, afirma Vera Silva.
Após uma palestra, os adolescentes percorreram empolgados os bosques fazendo coletas de insetos, desempenhando o papel dos cientistas e interagindo com eles e os guarda-parques. Depois, o material recolhido foi levado ao pequeno laboratório montado no Centro de Informação Ambiental, para que os jovens olhassem nas lupas mais de perto o que eles próprios coletaram. “Com isso, nós queremos que estes meninos e meninas desenvolvam um novo olhar sobre a riqueza que eles têm tão próxima às suas casas, e que aprendam a valorizá-la e protegê-la”, explica a pesquisadora.
“Nós acreditamos que produzir ciência e divulgar o conhecimento de ciência sempre vêm juntos. Então a gente vem para descobrir espécies novas, gêneros novos, padrões de distribuição, mas a gente quer contar para as pessoas que trabalham aqui ou que visitam o parque, ou que são vizinhas dele, o que a gente descobriu, para que elas também se apropriem deste conhecimento”, diz Dalton Amorim. E acrescenta: “A gente não quer que os alunos virem entomólogos, a gente quer que eles amem a natureza e ajudem a conservá-la.”
Foto de capa: Cecília Bastos/USP Imagens
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