Livro traz peculiaridades da experiência autonomista no México

Obra resulta de pesquisa sobre o movimento zapatista realizada junto às populações indígenas de Chiapas

 14/06/2018 - Publicado há 6 anos
Obra resultou de pesquisa sobre o movimento zapatista realizada junto às populações indígenas do Estado de Chiapas – Foto: Fábio Márcio Alkmin via Agência Fapesp

Quase um quarto de século depois do levante armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), a experiência de autonomia territorial, política e cultural perdura no Estado mexicano de Chiapas, servindo de baliza para outros projetos autonomistas, no México ou no exterior.

Ao longo desse período, a estratégia política original das chamadas Forças de Libertação Nacional (FLN), instaladas na Selva Lacandona desde 1983, foi profundamente transformada na interação com as populações indígenas locais, pertencentes a cinco etnias do tronco maia. E, da síntese entre um modelo teórico de inspiração marxista-leninista, que previa a organização popular para a tomada do poder de Estado, e a cosmovisão indígena, que buscava justamente a descentralização desse poder em favor das comunidades, resultou uma forma bastante peculiar de estar e agir no mundo.    

O assunto é objeto do livro Por uma geografia da autonomia (Editora Humanitas, 2018), de Fábio Márcio Alkmin. Resultado do trabalho de mestrado de Fábio, conduzido no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e orientado por Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde, o livro recebeu auxílio da Fapesp para publicação.

“Desenvolvi o estudo entre 2011 e 2015, com apoio da Fapesp. Na ocasião, permaneci seis meses no México: três na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam) e três em Chiapas. Em Chiapas, visitei comunidades e pude observar de perto a vida dos moradores”, disse o autor à Agência Fapesp.

Chiapas é o Estado mais pobre do México, com grande porcentual de população indígena. Nele, a autonomia zapatista constituiu-se em territórios descontínuos, estruturando-se, de baixo para cima, em comunidades, municípios e zonas autônomas – todos pautados pelo princípio de “mandar obedecendo”.

Chiapas é o Estado mais pobre do México, com grande porcentual de população indígena – Foto: Fábio Márcio Alkmin via Agência Fapesp

A centralidade administrativa, política e cultural de cada zona autônoma é dada pelo chamado “caracol”. São cinco zonas autônomas e, portanto, cinco “caracóis”, que se encarregam da mediação de conflitos e do gerenciamento de um sem-número de atividades: hospedagens para zapatistas e visitantes, cozinhas coletivas, mercearias, galpões, escritórios com internet, oficinas para consertos, quadras de esportes, cooperativas e, em alguns casos, rádios comunitárias, clínicas de saúde e escolas.

“Visitei dois caracóis. É uma estrutura que viabiliza o exercício concreto da autonomia: um poder paralelo, ou melhor, um ‘antipoder’, que substituiu as agências estatais expulsas do território. Essa forma de organização, que deve muito à cosmovisão tradicional indígena, possibilita que as pessoas decidam diretamente sobre tudo o que afeta suas vidas: o que vai ser ensinado nas escolas, o tipo de atendimento oferecido nos postos de saúde, a segurança ou a boa convivência nas comunidades”, disse Alkmin.

Apesar de se estruturar como um sistema complexo de autogestão e controle territorial, uma pintura mural da região parece expressar de maneira simples e direta o princípio que norteia a organização dos caracóis. Em meio a uma natureza benigna, um caracol multicolorido, com a cabeça coberta pela máscara do EZLN, afirma: “Lento, pero avanzo” (“Devagar, porém avanço”).

Nas cinco zonas autônomas, as autoridades do poder estatal foram substituídas pelas “Juntas de Bom Governo”, compostas de 10 a 15 pessoas, eleitas pelas comunidades de base a partir de alguns princípios. Entre eles: prestação de contas, cumprimento das deliberações das assembleias e revogação do mandato em qualquer tempo, caso as expectativas das comunidades não estejam sendo atendidas.

“Essas assembleias discutem todos os assuntos de interesse da comunidade. Seu tempo não é o tempo apressado da sociedade capitalista moderna, mas o tempo alongado da sociedade tradicional indígena. Uma assembleia pode durar vários dias. As pessoas discutem, comem, dormem, e voltam a discutir, procurando sempre soluções de consenso”, disse Alkmin.

No fundo, o que se busca é o exercício concreto da autodeterminação. Seguindo uma orientação formulada pelo próprio Emiliano Zapata (1879-1919) no curso da Revolução Mexicana (1910-1920, aproximadamente), o EZLN guardou suas armas, mas não as depôs. 

“A ideia marxista-leninista de tomada revolucionária do poder de Estado foi, porém, profundamente ressignificada na interação dos intelectuais da FLN com a população indígena. E resultou no lema ‘Nada para nós. Tudo para todos’. As pessoas não querem tomar o poder de Estado, nem impor aos outros grupos indígenas ou à população mexicana o que eles devem fazer. Mas viver como acham que devem viver. E respeitar que cada um, à sua maneira, também possa fazer o mesmo. É a ideia de que, no mundo, cabem muitos mundos”, disse o geógrafo.

O estudo foi desenvolvido entre 2011 e 2015, com apoio da Fapesp – Foto: Fábio Márcio Alkmin via Agência Fapesp

Uma preocupação dos zapatistas foi evitar o isolamento a que o próprio confinamento territorial poderia levar. Por isso, eles foram um dos primeiros movimentos a fazer uso da internet para se comunicar com o mundo e veicular seus comunicados, ainda em 1994. Uma iniciativa, ocorrida entre 2013 e 2016, foi a criação das chamadas Escuelitas Zapatistas (Escolinhas Zapatistas), por meio das quais pessoas do mundo inteiro foram convidadas para conhecer in loco o processo de autonomia.

Foto: Reprodução/Editora Humanitas

Outra iniciativa – bem recente – foi o encontro de mulheres zapatistas com mulheres da sociedade civil mexicana e internacional, que aconteceu em março de 2018. “Eles têm um grande interesse em mostrar ao mundo o que estão fazendo. Quando estive lá, me atribuíram a função de observador internacional de direitos humanos”, disse Alkmin.

“As cinco etnias falam línguas diferentes e utilizam o espanhol para poderem se comunicar nas assembleias. Em termos formais, a instância superior de organização político-militar do EZLN é o Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – Comandância Geral, responsável por articular a complexa rede das cinco Zonas Autônomas Zapatistas. Trata-se de uma estrutura herdada no contexto da guerra de 1994, que perdeu parte de suas funções políticas depois do cessar-fogo e da horizontalização do processo decisório, quando se estabeleceu, com muita força, a ideia de que o impulso principal venha realmente de baixo, isto é, das próprias comunidades indígenas”, prosseguiu.

No curso desse processo, o subcomandante Marcos, supostamente um ex-professor da Unam, procurou assumir papel mais discreto. Ele sempre evitou centralizar as atenções e por várias vezes afirmou que estava subordinado às decisões das bases do movimento. Mesmo assim, sua figura armada e encapuzada, compondo a imagem de uma espécie de Che Guevara com um toque de mistério, tornou-se um ícone do movimento zapatista, com forte apelo midiático.

Para sair de evidência, Marcos fez uma declaração retórica, dizendo que o subcomandante Marcos havia morrido e que ele era agora o indígena Galeano, efetivamente morto em um confronto com os inimigos do movimento. Marcos se despiu da persona algo romântica do subcomandante para assumir a persona de Galeano. E transferiu a subcomandância para Moisés, indígena zapatista que atualmente é o porta-voz do movimento. “O gesto, altamente simbólico, expressa bem a perspectiva de poder zapatista: descentralizada, autônoma e despersonalizada”, disse Alkmin.

Embora economicamente periférico, o Estado de Chiapas possui importância estratégica. Em uma área correspondente a nove vezes a da Região Metropolitana de São Paulo, o Estado concentra os rios mais caudalosos do México e 30% de toda a água superficial do país. Graças à sua riqueza hídrica, responde por 60% do total da energia hidroelétrica consumida em território mexicano. É também uma área muito rica em biodiversidade. E a região que conecta a América do Norte com a América Central, na fronteira do México com a Guatemala.

O livro pode ser adquirido no site da Editora Humanitas.

José Tadeu Arantes  / Agência Fapesp


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