Lives de Bolsonaro na pandemia ajudaram a criar o caos na comunicação da saúde pública

Pesquisadora destrincha estratégias e impactos dos conteúdos veiculados na gestão da crise sanitária

 Publicado: 10/09/2024 às 12:00     Atualizado: 13/09/2024 às 15:09

Texto: Jean Silva*
Arte: Diego Facundini**

Crise sanitária deixou mais evidente importância de uma comunicação de risco planejada e baseada nas melhores práticas - Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Agência Brasil/Reprodução/Facebook

Se você viveu a pandemia de covid-19 no Brasil, soube das lives do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro de alguma forma. Famosas pelas polêmicas declarações contra o isolamento social, a favor de tratamentos sem comprovação científica para a doença e ataques a instituições científicas, políticos e organizações transacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), as lives foram objeto de análise da pesquisadora Mariana Varella em sua dissertação na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

A estratégia de comunicação do então mandatário, marcada por um tom informal e combativo, foi alinhada com práticas populistas de extrema-direita, destacada pela defesa de princípios conservadores e o antagonismo a autoridades, mídia e instituições científicas. A análise de Mariana Varella sugere que essa abordagem contribuiu para a disseminação do vírus no Brasil, o que impactou negativamente a gestão da crise sanitária. “O Presidente da República estava na contramão de tudo que se fala e conhece sobre comunicação de risco”, aponta a pesquisadora.

“Ele escolhia exatamente o que queria falar, e quando iria falar. Tinha um domínio do discurso; dos convidados à parte estética”, explica.
Mulher branca com óculos e cabelos acobreados sorrindo de boca fechada

Mariana Varella - Foto: Aquivo pessoal

Além desse controle discursivo, com o uso de redes sociais como meio principal de comunicação do Governo Federal, ela também avalia que “ele organizou uma comunicação feita para os seus seguidores e colaboradores, para quem já gostava dele”. Essa postura é contrária às recomendações da OMS para comunicação de risco (comunicação que visa passar riscos e certezas em momentos de crises sanitárias), pois essa deve ser direcionada a todos.

Lives de Bolsonaro traziam aliados políticos e grande apelo à informalidade – Foto: Marcos Corrêa/PR via Agência Brasil

Os principais elementos dos conteúdos

Ao utilizar a técnica de análise de conteúdos de Laurence Bardin, uma das maiores referências para esse modelo de investigação e professora-assistente de Psicologia na Universidade de Paris V, a pesquisadora esquematizou três categorias analíticas: negligência, desinformação e uso político. A análise revelou que a comunicação do presidente frequentemente ignorou as orientações da OMS e do Ministério da Saúde, e minimizava a gravidade da pandemia. Essa negligência foi associada a uma falta de ação efetiva para proteger a saúde pública.

A desinformação, especialmente sobre supostos tratamentos para covid-19, como a hidroxicloroquina, não só confundiu a população, mas também contribuiu para a disseminação de teorias da conspiração e polarizou o debate público. “A disseminação de desinformação e a mobilização de grupos foram sempre feitas com a ideia de que uma elite está atacando a população. Essa elite não é apenas socioeconômica, mas também intelectual, acadêmica, científica, sendo retratada como inimiga dos interesses populares”, detalha Mariana.

A pesquisa evidenciou que o presidente também utilizou a pandemia como uma oportunidade para reforçar sua imagem política e mobilizar apoio, apresentando medidas como o auxílio emergencial para maximizar ganhos políticos e controlar a narrativa política durante a crise. Ao elucidar a questão da narrativa, ela ressalta o papel dos inimigos.

 “Ele escolheu bem seus inimigos, como Doria, o então governador de São Paulo, que estava se saindo muito melhor na comunicação de risco,” comenta.
Uma mulher e dois homens em uma mesa de seminário com o fundo reproduzido por projetor indicando a realização do seminário

O governo de São Paulo durante a pandemia, comandado por João Dória, teve as medidas recomendadas adotadas, o que foi alvo de narrativas bolsonaristas. Foto: Governo do Estado de São Paulo/Wikimedia Commons/CC BY 2.0

Assumindo uma postura de vítima, o ex-presidente usou um discurso carregado de ressentimento, no qual alegava ser alvo de ataques da imprensa, órgãos e de seus opositores, que ele dizia serem pertencentes à esquerda. “Ele rotulava diversas figuras e instituições como de esquerda, incluindo Doria, seu próprio Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, a OMS, a rede Globo, usando essa narrativa para reforçar seu discurso”, detalha.

Desafios da comunicação em crise sanitária

O estudo expõe a necessidade de se praticar uma comunicação de risco mais robusta e baseada na importância de estratégias eficazes em emergências de saúde pública, para evitar os erros observados durante a pandemia. A politização das ações de saúde pública dificultou a implementação de medidas eficazes e a adesão da população às recomendações. Para a pesquisadora, futuras estratégias de comunicação em saúde devem ser mais integradas e fundamentadas em evidências científicas. 

Mariana, que também é editora-chefe do portal Dráuzio Varella e cientista social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas  (FFLCH) da USP, ainda alerta que o grande desafio é que figuras da extrema direita “conseguem hoje a mobilização que querem. Então, se tiverem por algum motivo interesse em disseminar desinformação em uma grave crise sanitária, eles têm muito mais vantagem. Nós [ a mídia e outros órgãos oficiais de comunicação] ‘enxugamos gelo’”.

Ela, que realizou o mestrado no Programa de Pós-graduação em Ambiente, Saúde e Sustentabilidade da FSP, explica também que os conteúdos produzidos que respondem às desinformações “não vão ser lidos. Então não adianta desmentir aquilo, porque aquelas pessoas já estão acreditando nisso, ele [Bolsonaro] já desacreditou a informação”. Assim, alerta que “temos que estudar melhor e entender as estratégias de comunicação desses grupos para conseguir combatê-los”. A cientista social completa que, apesar de figuras de extrema direita ‘surfarem’ melhor nas redes sociais, “a redes podem ser uma ferramenta muito importante para a comunicação de risco, inclusive a OMS reconhece isso”.

*Estagiário sob orientação de Luiza Caires
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado

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