Experimento dá força à tese do cérebro como “máquina” de produzir inferências estatísticas

Experimentos avaliaram capacidade de previsão de jogadores que controlavam um goleiro numa sequência de pênaltis; com equipe multidisciplinar, trabalho é obra póstuma de professores da USP

 Publicado: 27/09/2024 às 15:53     Atualizado: 30/09/2024 às 14:33

Texto: Tabita Said

Arte: Joyce Tenório*

O desempenho dos participantes no Jogo do Goleiro alimenta um banco de dados que é comparado a modelos matemáticos do funcionamento cerebral, ajudando na compreensão do cérebro humano. Programação e produção da interface gráfica do jogo foram coordenadas por Marco Dimas Gubitoso, professor da USP falecido em 2022 – Imagem: Reprodução/Cepid Neuromat

A história do artigo científico publicado em 2024 por dois professores da USP falecidos em 2022 e 2023 desafia a noção estabelecida de tempo, assim como o jogo que eles criaram. O matemático e estatístico Antonio Galves e o físico e mágico Marco Dimas Gubitoso tiveram papel fundamental no Goalkeeper Game – Jogo do Goleiro – no qual o jogador desempenha a função de goleiro e tenta adivinhar para qual direção o cobrador de pênaltis chutará a bola. O jogo, desenvolvido desde 2015 pelo Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat), sediado na USP e financiado pela Fapesp, foi utilizado pelos pesquisadores do grupo para identificar as estratégias utilizadas pelos participantes para enfrentar a aleatoriedade das escolhas de um chutador de pênaltis.  

Ecoando a ausência de Galves e Gubitoso, e graças à determinação dos outros membros da equipe, o artigo publicado pelo NeuroMat na revista Scientific Reports reforça as contribuições do grupo para a hipótese de que o cérebro é uma máquina de produzir inferências estatísticas. O trabalho apresenta um novo modelo matemático para estudar como diferentes tipos de sequências de eventos contendo variáveis aleatórias afeta o processo de aprendizado dos jogadores.

Para as análises, 120 pessoas participaram do experimento jogando o Jogo do Goleiro. Inicialmente, o goleiro era orientado a defender o máximo possível de pênaltis, prevendo, antes de cada pênalti, se o batedor chutaria para a esquerda, para a direita ou para o centro do gol. Seu único recurso era a utilização das experiências adquiridas a partir dos chutes anteriores para identificar a regularidade da sequência de batidas. 

Foto de Claudia Domingues Vargas, uma mulher branca, de cabelos castanhos presos como um rabo de cavalo. Ela uma uma camisa floida e está sorrindo.
Claudia Domingues Vargas, pesquisadora do CEPID NeuroMat - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“Quando os eventos anteriores são determinísticos, ou seja, eles acontecem sempre regularmente naquela mesma sequência [direita, centro, esquerda] repetidamente, é mais fácil para seu cérebro aprender a sequência e prever qual é o evento a seguir. Mas, quando existe uma variabilidade embutida, essa previsão se torna mais difícil e requer uma estratégia para aprender aquela sequência”, explica Claudia Vargas, neurobióloga e professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela integra a equipe de pesquisadores do NeuroMat e é uma das autoras do estudo.

Obtidos a partir de uma modelagem matemática das taxas de acerto do goleiro, os resultados mostraram que sequências contendo mais “elementos surpresa” dificultam a previsão do próximo item. 

O estudo revelou ainda que os goleiros levaram em consideração tanto as ações passadas do batedor quanto suas próprias escolhas anteriores, enquanto estavam aprendendo a sequência de eventos. As evidências mostram, no entanto, que à medida que os goleiros aprendem a estrutura da sequência de batidas e que conseguem estimar a sua imprevisibilidade, eles deixam de considerar as suas respostas anteriores.

“A modelagem matemática utilizada nesse artigo revela que quando o goleiro já aprendeu a estrutura da sequência, ele deixa de considerar o evento anterior para estimar o próximo evento. Não importa mais, o evento anterior pra ele já é passado, é como se ele ficasse focado no presente”, afirma Claudia. 

Antonio Galves foi diretor do NeuroMat e seu trabalho culminou no modelo de redes neurais Galves-Löcherbach –  Foto: Cepid NeuroMat/Wikipedia Commons – CC BY-SA 4.0

Marco Dimas Gubitoso era professor e mágico. Ele desenvolveu o primeiro antivírus do Brasil, em 1980, o Leucócito – Foto: Currículo Lattes

Imprevisibilidade em tudo

A ideia de imprevisibilidade é algo com o qual as pessoas lidam diariamente. Atravessar uma rua conhecida com um certo fluxo de carros pode fazer parte da experiência diária de alguém. Mas,há sempre o risco de um motorista furar o farol vermelho ou de um ciclista passar na contramão da via. Esses eventos que fogem à regra e quebram nossa expectativa criam uma interferência no processo de aprendizagem. A proposta do trabalho foi utilizar uma abordagem que permitisse modelar estatisticamente essa imprevisibilidade durante o processo de aprendizagem de sequências de eventos. 

As sequências de escolhas do batedor foram geradas por algoritmos criados a partir de um objeto matemático inventado pelo cientista de dados Jorma Rissanen (1983), chamado Modelo de Árvore de Contexto. A árvore de contexto gera uma sequência de eventos ou de símbolos que contém uma estrutura e uma variabilidade intrínseca, definidas previamente pelo experimentador.

“Para realizar a análise dos dados, utilizamos o método de seleção estatística de modelos. A partir da taxa de acerto ou do tempo de resposta do goleiro, foi possível reconstruir uma árvore de contexto e verificar se ela era equivalente ou não ao algoritmo original que gerou a sequência. Esse é o pulo do gato e uma contribuição fundamental do Antonio Galves”, destaca a pesquisadora da UFRJ.  

Nos experimentos do NeuroMat, os pesquisadores adicionaram diferentes graus de variabilidade aos algoritmos que controlam o batedor de pênaltis. No primeiro experimento, dois algoritmos foram analisados: um tinha uma estrutura regular, com uma certa variabilidade. O outro algoritmo tinha mais variabilidade de elementos. Ao aumentar a variabilidade da sequência, aumentava também a entropia, “que é o grau de desordem e o número de variáveis possíveis que a estrutura tem”, explica Claudia.

A pesquisadora destaca que, à primeira vista, os dois pares de algoritmos pareciam produzir sequências com taxas de aprendizado semelhantes. Mas, ao aplicar a metodologia de análise desenvolvida pelo NeuroMat, foi possível ver que o aumento de entropia produz uma pequena mudança no ritmo de aprendizado das sequências geradas. Além disso, o aumento da entropia fez com que mais goleiros visitassem com mais frequência os eventos anteriores para estimarem o próximo evento.

Em um segundo experimento, os pesquisadores modelaram algoritmos mais elaborados: um algoritmo com uma regularidade e uma estrutura recorrente, que voltava sempre para um elemento principal; e o outro continha uma modificação que quebrava essa recorrência. “A gente viu que quando ocorre essa quebra da estrutura regular, pouquíssima gente aprende a sequência”, conta a professora. Claudia lembra ainda que o segundo experimento impactou de maneira mais efetiva no aprendizado. 

“Nosso cérebro, de alguma maneira, se ancora nessa regularidade, na previsão de eventos que ocorrem de maneira regular e fixa, com alguma recursividade. Sempre acontecendo dentro de uma certa regularidade para poder aprender a sequência”, aponta. 

Imagem do esquema que mostra a atuação do participante como goleiro. Quanto maior o número de variações possíveis, mais os jogadores recorriam ao passado para prever o próximo passo.
Esquema mostra atuação do participante como goleiro. Quanto maior o número de variações possíveis, mais os jogadores recorriam ao passado para prever o próximo passo - Imagem: Adaptada do artigo / Nature

Cérebro estatístico

Na teoria do “cérebro estatístico”, estamos continuamente buscando antecipar a ocorrência de um próximo evento baseado em um acontecimento anterior. A previsão probabilística de eventos está relacionada a um aprendizado do cérebro, que recorre aos registros de experiências acumuladas para calcular as possibilidades e tomar as decisões mais convenientes. 

A soma das experiências anteriores com as condições do contexto atual ajudam o cérebro a estimar um resultado determinado. Essa expectativa de ocorrência de um evento deixa uma assinatura neural; uma marca na atividade cerebral que é possível mensurar por meio de exames como o eletroencefalograma (EEG). A quebra da expectativa também gera assinaturas neurais diferentes.

Esta constatação também foi feita pelo NeuroMat, em 2021, quando o grupo de pesquisa mapeou árvores de contextos geradas a partir de estímulos auditivos. Utilizando dados eletroencefalográficos de 19 voluntários, o trabalho liderado pela engenheira informática cubana Noslen Hernández reforça a clássica hipótese de que o cérebro aprende regularidades estatísticas a partir de sequências de estímulos. 

Após a publicação desses experimentos, a próxima direção de desenvolvimento do Jogo do Goleiro envolve a criação de uma versão controlada para experimentos em laboratório. 

“Estamos agora mesmo coletando dados eletrofisiológicos associados à fase em que o goleiro deve decidir para que lado o batedor deve chutar o próximo pênalti. Nossa ideia é identificar as assinaturas neurais presentes no cérebro do goleiro associadas ao aprendizado da sequência de eventos. Em outras palavras, extrair, a partir do sinal de EEG ou da excitabilidade corticoespinhal, o mecanismo de seleção estatística de modelos utilizado pelo goleiro para aprender aquela sequência de eventos”, diz Claudia. 

O artigo Probabilistic prediction and context tree identification in the Goalkeeper game foi publicado na revista Scientific Reports e pode ser lido neste link.

Mais informações: cdvargas@biof.ufrj.br; neuromat@numec.prp.usp.br

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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