Percepção de excesso de medicação no nascimento faz mulheres optarem por parto domiciliar planejado

Psicóloga estudou a experiência de mulheres que se planejaram para ter seus bebês em casa, sem intervenção médica

 21/09/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 24/09/2020 as 18:59
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As altas taxas de cesáreas realizadas no País podem apontar para uma hipermedicalização do parto, em que o protagonismo feminino, na hora do nascimento, é apagado, avalia pesquisadora 

 

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que a taxa ideal de partos feitos por cesárea fique entre 10% e 15% de todos os partos realizados. De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, 52% dos partos no Brasil são cesáreas e o número chega a quase 90% no setor privado. Apenas 5% são naturais, sem nenhuma medicação. As altas taxas do procedimento apontam para uma hipermedicalização do parto no País, em que o protagonismo feminino, na hora do nascimento, é apagado. A pesquisa de mestrado da psicóloga Lydiane Bocamino, realizada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, estudou a experiência de 17 mulheres que se planejaram para ter o filho em casa e concluiu que a vivência foi empoderadora para as mulheres. 

O estudo Meu filho nasceu em casa: compreendendo a experiência de mulheres que optaram pelo parto domiciliar planejado analisou a vivência de 17 mulheres, com idades entre 28 e 42 anos. A pesquisa foi orientada pela professora Carmen Lúcia Cardoso e apresentada em 2020. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) financiou o trabalho. 

“O primeiro parto foi por eu ter percebido que uma coisa estava estranha e ir atrás. Ela [a médica] falou que não podia passar de 40 semanas. Nós optamos por induzir o parto, porque eu queria que fosse normal de qualquer forma. Fiquei com dó porque já tinha saído o tampão, em dois dias eu iria entrar em trabalho de parto. Ela induziu, colocou soro com ocitocina [hormônio que induz as contrações] e foi super-rápido, não acontece naturalmente com a ocitocina. Então acabou que eu senti mais dor do que deveria, não consegui nem sair da maca”, mostra um relato anônimo que a pesquisadora coletou. 

O planejamento do parto

O parto domiciliar pode ou não ser planejado, a diferença está na preparação da mãe durante a gestação, o que só ocorre quando há planejamento. Ainda hoje, partos domiciliares são muito comuns em regiões pobres e sem acesso hospitalar e, geralmente, são realizados por parteiras. Nos últimos anos, o parto domiciliar planejado ganhou destaque no cenário urbano e abastado. O procedimento configura-se pelo desejo da mulher de parir em casa. Para isso, é preciso contar com critérios médicos de normalidade, assistência qualificada, equipamentos adequados e um acesso hospitalar, caso seja necessário.

Lydiane Bocamino – Foto: Cedida pela pesquisadora

Apenas o Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, Minas Gerais, disponibiliza assistência especializada para o parto domiciliar planejado, pelo SUS. Os planos de saúde também não cobrem esse tipo de procedimento. Por isso, planejar o parto domiciliar ainda é algo reservado para mulheres com maior poder socioeconômico. Em média, a renda das pesquisadas era de 12 salários mínimos mensais. No Brasil não existem dados específicos sobre quantas pessoas nascem por parto domiciliar planejado.

Para a OMS, a casa é um lugar seguro para o parto desde que o risco seja o habitual e que haja uma equipe pronta para ajudar caso algo aconteça. Em casos de gravidez de alto risco, ou seja, quando há chances de haver complicações na hora do parto que sejam perigosas para a mãe, para o bebê ou ambos — como quando a gestante tem doenças crônicas, espera mais de um bebê, entra em trabalho de parto prematuro ou quando o bebê tem alguma má-formação — o parto não pode ser feito em casa, a mulher precisa ter o filho no hospital para que haja acompanhamento de uma equipe médica especializada.

Os motivos da escolha

Insatisfação com o atendimento hospitalar, uso de intervenções consideradas inadequadas e o desejo de vivenciar um parto mais natural e fisiológico são os motivos por trás da escolha. Das 17 participantes, 11 delas já haviam tido experiências hospitalares como partos ou intervenções decorrentes de abortos. Elas citam, como intervenções mais comuns, o uso da ocitocina; exame de toque frequente (em que o médico, durante o trabalho de parto, induz o indicador e o dedo médio na vagina da gestante com o objetivo de tocar no colo do útero e verificar o grau de dilatação); amniotomia (ruptura proposital e artificial da bolsa amniótica para acelerar o parto); posição de litotomia (em que se eleva as pernas da parturiente com um apoio, deixando a mulher restrita); manobra de kristeller (pressão na parte superior do útero para o bebê sair mais facilmente) e separação precoce de mãe e bebê.

Todo o processo vivenciado pelas participantes promoveu novas relações, delas consigo mesmas, com os companheiros e com os familiares – Ilustração: Pixabay

Vale ressaltar que todos esses procedimentos são recomendados pela OMS em casos específicos — como quando há sangramento muito intenso, por exemplo — porém, os hospitais usam os procedimentos descritos como rotina nos partos. “Há uma supremacia das tecnologias médicas e as relações humanas ficam em segundo plano”, afirma Lydiane ao Jornal da USP, destacando que “as tecnologias médicas trouxeram grandes avanços mas também afastaram as relações entre médicos e pacientes”. 

Com a intenção de abreviar o trabalho de parto são aplicadas medicações e intervenções dolorosas em uma ideia de passividade da mulher no processo do parto. Psicologicamente, é importante que haja uma relação entre a equipe que fará o parto e a parturiente para que a mulher se sinta segura na hora do nascimento e no pós-parto. O estudo aponta que esse relacionamento é quase inexistente pois, em geral, são médicos plantonistas que realizam o parto.

O sentimento depois do parto

A análise demonstrou que o parto domiciliar planejado é uma maneira de a mulher se recusar a submeter-se aos procedimentos hospitalares. “A experiência trouxe às mulheres maior contato com elas mesmas”, comenta a psicóloga. Ter passado pelo parto domiciliar, desde a escolha até o pós-parto, provocou maior empoderamento das participantes. Para a maioria delas, passar pelo medo da dor sem analgesia foi um dos maiores desafios.

Todo o percurso de enfrentamento das participantes frente às próprias angústias, medos e julgamentos resultou em uma maior consciência de si no pós-parto. Nesse contexto, o processo todo vivenciado pelas participantes promoveu novas relações, delas consigo mesmas, com os companheiros e com os familiares.

A experiência trouxe às mulheres maior contato com elas mesmas”

Atualmente, nas mídias e nas redes sociais, são cada vez mais comuns relatos e imagens de partos domiciliares planejados. O estudo mostra que o papel da mídia tem sido importante nas discussões das práticas e condutas voltadas para a maternidade, mas também estimula a imaginação e o consumo de rituais idealizados para um parto domiciliar planejado. 

Segundo a pesquisadora, as mulheres podem ser capturadas por discursos de partos românticos. Por um lado, fantasiar o parto pode ser compreendido como mecanismo de proteção para o enfrentamento dos medos sobre o procedimento. Por outro, pode ter gerado sofrimento, uma vez que  algumas participantes não conseguiram realizar suas fantasias. “Esses elementos devem ser pensados a partir da singularidade de cada mulher e não de protocolos”, destaca Lydiane ao Jornal da USP.

Os resultados obtidos e os relatos das mães podem ajudar a melhorar as redes hospitalares. Ainda que o estudo tenha dado preferência aos partos domiciliares planejados, pode servir como base para incentivar hospitais a adotar o parto humanizado como prática.

Mais informações: e-mail lydiboca@hotmail.com, com Lydiane Bocamino


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