A leptospirose é uma doença bacteriana transmitida pela urina dos animais – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Estudo sugere novos rumos para uso de vacinas contra leptospirose canina

Cepas de leptospirose presentes hoje no Brasil estão cobertas pelas vacinas, mas estudos futuros devem se concentrar em possíveis ameaças observadas por levantamento

 10/05/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 11/05/2023 as 17:16

Texto: Ivan Conterno

Arte: Gabriela Varão

Uma revisão de estudos sobre ocorrência da leptospirose canina revelou que a vacina mais abrangente, que protege contra quatro cepas, pode não ser a mais indicada para os cães brasileiros. Embora os imunizantes para leptospirose canina disponíveis estejam adequados às variantes encontradas, a versão importada pode não ser necessária para casos encontrados no País. O artigo foi publicado na revista Preventive Veterinary Medicine, detalhando os métodos estatísticos empregados pelos pesquisadores da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP e da Universidade Santo Amaro (Unisa) no estudo.

A vacinação em cães, que precisa ser realizada anualmente, possui duas versões no mercado: a polivalente com duas cepas — Icterohaemorrhagiae Canicola — e a versão com quatro cepas, que protege o animal, além dos tipos mencionados, de variantes da leptospirose existentes nos Estados Unidos e no Canadá — Pomona Grippotyphosa. Essas duas variantes a mais, no entanto, não são consistentemente encontradas no Brasil, de acordo com os levantamentos analisados. Isso levanta a discussão a respeito da necessidade desses imunizantes em vez do desenvolvimento de vacinas polivalentes compatíveis com as cepas que circulam no Brasil.

Stephanie Bergmann Esteves, primeira autora da pesquisa, esclarece ao Jornal da USP que o acréscimo de antígenos pode aumentar o risco de eficácia insuficiente, diminuindo o período de proteção conferida: “Além do custo, geralmente, ser mais elevado, é uma questão de direito do consumidor ter a opção de escolher a vacina necessária ou desejada.”

Os cachorros estão altamente expostos à infecção por leptospiras, bactérias que podem causar leptospirose tanto em humanos quanto em animais. São 350 variedades conhecidas, cada uma delas dividida em grupos, conhecidos como sorogrupos, de acordo com a capacidade de serem reconhecidos por um mesmo anticorpo. Os anticorpos, por sua vez, são proteínas que identificam a infecção por meio da membrana externa da bactéria de cada variante, ou sorovar, como são chamadas.

Nos animais, a vacinação é a principal estratégia de prevenção, mas o sucesso depende da correspondência dos sorogrupos circulantes com os usados na composição da vacina. “A leptospirose não tem proteção cruzada entre os sorogrupos, então precisamos colocar um representante de cada sorovar que existe no ambiente para que ela possa proteger o cachorro. Se colocarmos Icterohaemorrhagiae, não vamos proteger de Canicola, por exemplo”, explica Stephanie, que é mestranda do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal da FMVZ da USP.

Stephanie Bergmann Esteves - Foto: Reprodução/LinkedIn

Stephanie Bergmann Esteves – Foto: Reprodução/LinkedIn

Stephanie Esteves, em conjunto com o professor Bruno Alonso Miotto, da Universidade Santo Amaro (Unisa) e outros seis pesquisadores, coletou e verificou dados de outras pesquisas com os anticorpos encontrados em cães e os fatores de risco para a doença. De acordo com o estudo, as variantes CanicolaIcterohaemorrhagiae Autumnalis são as mais frequentes no Brasil. Outras como Pomona Grippotyphosa, incluídas em vacinas polivalentes com quatro cepas, não são encontradas em quantidade relevante.

Os pesquisadores alertam que futuros estudos devem se concentrar na identificação das leptospiras do grupo Autumnalis para verificar se os anticorpos encontrados nas amostras de sangue desses animais contra esse sorovar correspondem a uma real presença da variante no País, ou se é um caso de reação cruzada com outro sorogrupo. Caso realmente exista a circulação no nível nacional, seria indicado atualizar a composição vacinal.

“A maioria das vacinas polivalentes com quatro cepas comercialmente presentes tem IcterohaemorrhagiaeCanicolaPomona Grippotyphosa, mas as duas últimas são sorogrupos que estão muito presentes nos Estados Unidos e no Canadá, que é onde essa vacina é produzida. Elas são comercializadas aqui e vistas pela maioria dos tutores e pela maioria dos veterinários como a vacina ideal, porém o que nós vemos circulando aqui é Icterohaemorrhagiae e Canicola. Temos pouco embasamento da circulação de Pomona Grippotyphosa. Talvez vacinas com essa combinação de cepas não sejam necessárias aqui no Brasil.”

(A) Grupos mais frequentemente encontrados em cães assintomáticos por estado. (B) Frequência de estudos e grupos encontrados por região e estado – Imagem: Preventive Veterinary Medicine

De acordo com o estudo, falta uma vigilância epidemiológica contínua e melhorias nas políticas de prevenção da leptospirose em cães no Brasil, já que os imunizantes ainda não são adotados pelos serviços públicos. Isso explica por que os cães mantidos por tutores com condições sociais e econômicas precárias e os cães abandonados são os mais expostos ao risco de infecção. Consequentemente, isso reflete na exposição de pessoas mais pobres à doença.

A leptospirose em humanos está associada principalmente a más condições sanitárias e interações com animais. Ocorre que essa infecção canina pode ser assintomática, com cães excretando a bactéria por longos períodos de tempo. Nesse sentido, a abordagem conhecida como Saúde Única busca a conexão entre a saúde humana, animal e ambiental, para prevenir a leptospirose.

Segundo o levantamento, a taxa geral de animais infectados é de 19,7% para leptospirose canina, corroborando com as taxas de positividade estimadas em todo o mundo. Particularmente, os cachorros brasileiros estão mais expostos às variantes Canicola Icterohaemorrhagiae, cobertas pelas vacinas disponíveis. No entanto, é preciso monitorar as cepas PomonaSejroe Australis, consideradas esporádicas. A variante Autumnalis também merece atenção por ser particularmente prevalente em alguns estados brasileiros, o que pode estar relacionado à exposição a ratos e camundongos em áreas urbanas.

Número de estudos epidemiológicos realizados por estado no Brasil e classificação de cores pelo percentual médio de cães infectados encontrados nos estudos realizados em cada estado – Imagem: Preventive Veterinary Medicine

Ainda assim, a falta de registro de casos confirmados e as dificuldades em diagnosticar a infecção em casos suspeitos limitam a implementação de um sistema de vigilância completo. Seria importante, por exemplo, isolar e caracterizar leptospiras em cães clinicamente doentes e assintomáticos para o desenvolvimento de vacinas condizentes com as cepas locais. A falta de amostras e de informações claras sobre o status de vacinação dos cães em alguns locais também foi apontada como um problema.

Prevenção

A leptospirose é uma doença bacteriana transmitida pela urina dos animais. Os cães que apresentam sintomas devem ser levados imediatamente ao veterinário para um diagnóstico preciso e tratamento adequado. Os sintomas incluem febre, perda de apetite, fraqueza, vômitos, icterícia (pele amarelada), aumento da sede e urina escura. Em casos graves, a doença pode levar à insuficiência renal e hepática. Além da vacinação anual, a prevenção também inclui manter o ambiente limpo e higienizado.

Curiosamente, alguns fatores comumente associados à infecção em humanos não foram observados em cachorros, segundo a pesquisadora: “A época chuvosa não foi considerada um fator de risco”. Ela esclarece que isso ocorre porque o contato dos animais com as bactérias é mais intenso mesmo na estação mais seca: “O cachorro vai caçar, vai andar numa poça d’água sem cuidado, vai roer coisas por aí, vai enfiar a cabeça na lama”. Embora a presença de roedores não tenha sido também considerada um fator de risco, a pesquisadora sugere que o motivo pode ser a vergonha que os entrevistados têm de assumir que existem ratos em suas casas: “Existe também a possibilidade de o roedor não ser visto, mas o cão ter esse contato.”

Revisão sistemática

Por trabalhar enquanto cursava a graduação em medicina veterinária, a revisão sistemática através da meta-análise foi a porta de entrada de Stephanie Esteves para as pesquisas acadêmicas: “Eu encontrei a chance de poder fazer pesquisa com o tempo que eu tinha. Com a pandemia, nós começamos a fazer muitas revisões sistemáticas, porque ninguém podia sair de casa. É um tipo de pesquisa muito demorada, mas é muito rica, porque lidamos com estudos diversos soltos que podem ter um poder muito maior quando analisados juntos.”

A meta-análise é um método estatístico para reunir dados de vários estudos sobre um mesmo assunto, atribuindo pesos para cada tipo de amostra. A pesquisadora já era programadora quando iniciou a faculdade de veterinária e teve o primeiro contato com essa ferramenta na iniciação científica.

“As pessoas precisam de alguém que possa ir ao laboratório, e eu não podia. Então meu orientador me incentivou a aprender: ‘É complicado, é longo, mas, se você conseguir aprender, nós faremos a pesquisa’”. Durante o mestrado na USP, a veterinária organizou o material dessa primeira revisão no artigo que foi publicado.

Mais informações: sbergmann@usp.br, com Stephanie Bergmann Esteves


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