Estimulação transcraniana por ondas sonoras de baixa frequência (TPS) melhora sintomas neuropsiquiátricos do Alzheimer

Método já usado em outras áreas da medicina, como ortopedia e urologia, aplica ondas de choque para estimular a regeneração de tecidos e vasodilatação

 05/09/2024 - Publicado há 5 meses     Atualizado: 17/09/2024 às 15:03

Texto: Gabriele Mello*
Arte: Diego Facundini**

Fotomontagem Jornal da USP com imagem disponibilizada pelo pesquisador

De acordo com o Relatório Nacional sobre Demências, ao menos 2 milhões de pessoas com mais de 60 anos vivem com algum tipo de demência no Brasil, condição que não tem cura. O Alzheimer está entre as formas mais comuns em mais velhos, causando alterações na memória, na personalidade e em habilidades essenciais, como as visuais e espaciais.

Como uma alternativa pouco invasiva de tratamento, pesquisadores do Instituto de Medicina Física e Reabilitação (IMREA) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP) utilizam a estimulação de pulso transcraniana (TPS) e observaram melhoras cognitivas e comportamentais em sintomas demenciais. Desde 2021, com objetivo de expandir o estudo, que tinha inicialmente dez pacientes, o trabalho é feito em parceria com o Instituto de Psiquiatria (IPq) do HCFMUSP, atingindo atualmente 50 pacientes. 

A estimulação de pulso transcraniana utiliza ondas de choque e é feita de maneira difusa por todo o crânio, para atingir todas as regiões do cérebro. “A onda de choque é uma onda sonora especial e focalizada, com um pico de pressão que atinge até cinco centímetros de profundidade nos tecidos”, conta Gilson Shinzato, médico fisiatra e primeiro autor do artigo.

Apesar de a técnica já ser utilizada em outras áreas da medicina, neste estudo, os pesquisadores desenvolveram o método baseado na experimentação clínica: após diferentes tentativas, definiram que a aplicação aconteceria de modo difuso, por todo o crânio, em movimento circulares do aplicador. Entre os benefícios já conhecidos da TPS estão a vasodilatação – em que os vasos sanguíneos se “abrem”, melhorando a passagem do sangue –, ação anti-inflamatória e estímulo à regeneração de tecidos.  

Foto do pesquisador Gilson Shinzato, um homem amarelo, com olhos escuros, e cabelos escuros e curtos. Na foto, ele usa óculos e está sorrindo.

Gilson Tanaka Shinzato - Foto: CV Lattes

Os pacientes que receberam a intervenção tiveram uma melhora dos sintomas em torno de quinze dias a dois meses depois. Shinzato destaca que os pacientes apresentaram resultados positivos nas áreas de atenção, e investigação temporal e espacial, que auxiliam na melhora da memória. No entanto, em sintomas como ilusões, alucinações e delírios, a aplicação não teve efeito algum. “A experiência clínica com casos individuais demonstra que os sintomas paranóides [como ilusões e alucinações] e obsessivos, e também transtornos do sono, continuaram exigindo medicação tradicional específica, em todos os pacientes até agora tratados”, explica Paulo Cesar Sandler, psiquiatra do IMREA e co-autor da pesquisa. 

Os acompanhamentos clínicos foram feitos em follow-up, de forma contínua, com frequência quinzenal ou mensal. Todos os sintomas foram avaliados através de questionários, que mediam também a independência do paciente e sobrecarga dos cuidadores. No Questionário de Inventário Neuropsiquiátrico, NPI-Q, que avaliou os sintomas neuropsiquiátricos, houve uma redução de 23 pontos nos primeiros 30 dias, de uma escala que vai de 0 a 144. Assim, mesmo com um número pequeno de pacientes expostos ao tratamento e o curto espaço de tempo, os resultados indicam uma evolução nos pacientes, destacam Shinzato e Sandler. 

Homem passando dispositivo em cabeça de gesso. No canto inferior esquerdo, uma tela de computador mostra imagens de cérebro.

Demonstração de aplicação de TPS em manequim, com profissional acompanhando os locais atingidos através de tela - Foto: Disponibilizada pelo pesquisador

Aplicação da estimulação de pulso transcraniana

Os dez pacientes que receberam a intervenção tinham acima de 50 anos e a doença de Alzheimer provável e possível segundo critérios diagnósticos. “A diferença entre um e outro é a quantidade de lesão vascular [nas células do cérebro]. Na doença ‘provável’ você espera que tenha pouquíssima lesão vascular, e na ‘possível’ você já admite que tenha um pouco mais de conteúdo de lesão vascular”, explica Orestes Forlenza, professor do IPq e co-autor da pesquisa.

O método de estimulação de pulso transcraniana, ou estimulação transcraniana por ondas de som de baixo pulso, foi descoberta pelo fisiatra alemão Henning Lose-Busch, que também identificou as técnicas de aplicação. O aparelho, utilizado pela técnica, conta com um neuronavegador, que mostra “representações do percurso do aplicador sobre imagens de ressonância magnética de cada paciente, in loco, no momento da aplicação, permitindo mais precisão”, detalha Sandler. 

Ao serem submetidos à TPS, era necessária a aplicação de um gel comum, como o de ultrassom, sobre cabeça do paciente, que passava por “uma varredura lenta no cérebro todo ao longo de meia hora. Os pacientes faziam dez sessões e, ao final, eram submetidos de novo aos questionários”, diz Shinzato, que completa destacando que o tratamento é indolor, e o único incômodo é a aplicação e limpeza do gel.  

As sessões eram realizadas duas vezes na semana, com duração de 30 minutos e com a presença dos acompanhantes dos pacientes. Os questionários de avaliação foram reaplicados um, três e seis meses depois das aplicações. No artigo, constam os resultados encontrados para um e três meses após as sessões, dos dez pacientes incluídos na publicação.

A pesquisa ainda é inicial, e foi feita com uma amostra pequena de pacientes, mas deve progredir. “O estudo pode agora ser visto como tendo ultrapassado a fase inicial, adentrando à fase randomizada, com 45 pacientes, [com amostra de pacientes selecionada de modo aleatório], e controlado com placebo, elevando o rigor científico se comparado com o estudo em follow-up de casos, com o cegamento [não se sabe em qual dos pacientes é aplicado o tratamento ou o placebo] dos avaliadores, pacientes e acompanhantes, para sedimentar cientificamente, nos critérios atuais, as evidências que já tivemos”, relata Shinzato. A aplicação do placebo acontece de forma idêntica, mas sem a emissão das ondas de choque.

Após as avaliações, os indivíduos que receberam o placebo também serão convocados para receber o tratamento com TPS.

Tela de dispositivo dividida em quatro imagens, que mostram o cérebro e o crânio. As regiões mais próximas do crânio estão em verde.

O neuronavegador do dispositivo demonstra a aplicação difusa por todo o cérebro dos pacientes - Foto: Disponibilizada pelo pesquisador

Melhora comportamental

Como detalha Forlenza, a doença de Alzheimer tem início na formação hipocampal, região relacionada aos processos de aprendizado e memória. “Ela se espalha depois para outras regiões do sistema límbico e acaba acometendo de uma maneira mais difusa o neocórtex [região responsável pela linguagem e pensamento lógico], e leva progressivamente à perda de funções cognitivas”, explica o professor.

“Nós já sabíamos que o estímulo cerebral poderia ser uma ferramenta interessante, que poderia nos ajudar a entender melhor esse declínio cognitivo, e também diminuir a sua velocidade”, relata Linamara Battistella, professora da FMUSP e co-autora da pesquisa. “Não era nova a questão da neuromodulação cerebral [técnicas que atuam no sistema nervoso e estimulam o funcionamento das vias neurais] por diferentes mecanismos”, completa. Mas, diferente de outros métodos de neuromodulação, que costumam ser estacionários – em que é necessário precisão na posição do equipamento e do paciente para atingir a área desejada – a aplicação do TPS contemplou todo o crânio dos pacientes.

“Além da aplicação difusa, escolhemos uma estratégia de concentrar energia em áreas relacionadas à conectividade geral do cérebro, e em outras relacionadas ao comportamento, regulação e estabilidade de humor”, diz Shinzato.

“A impressão é que o método realmente entrega um benefício, que é mais evidente nos sintomas comportamentais [como comportamentos repetitivos, paranoia e perambulação], o que é interessante, porque é uma das demandas menos atendidas nessa área”, destaca Forlenza. “Essa estimulação feita a partir da onda de choque poderia se colocar como uma alternativa bastante entusiasmante”, completa Battistella.

Uma lógica de cuidados

O Brasil, assim como outros países do mundo, espera um aumento de sua população de idosos nos próximos anos. “A gente vê uma população que envelhece e, claro, espera que todo mundo envelheça com qualidade de vida, no entanto, as condições crônicas de saúde, o próprio estilo de vida acaba condicionando ao aparecimento do declínio cognitivo”, reflete Battistella.

Por isso, a professora destaca que uma pesquisa voltada ao tratamento da doença de Alzheimer atende a um desafio mundial: o de construir uma lógica de cuidados, garantindo qualidade de vida para os pacientes e suas famílias. Forlenza acredita que a TPS pode funcionar como uma terapia conjunta ao que já é utilizado atualmente, promovendo uma boa sobrevida aos pacientes.

“Às vezes, não é possível impedir a evolução. Apesar dos tratamentos, a doença ainda progride”, diz Forlenza. Mas o professor lembra que atenuar a progressão pode transformar a trajetória do paciente, deixando mais suportável também para a família, tentando “promover o máximo possível a capacidade funcional e a capacidade de aproveitar a vida dessas pessoas”, finaliza.

Mais informações: e-mail g.shinzato@hc.fm.usp.br, com Gilson Shinzato

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz e Luiza Caires


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