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Enfermeiros apontam entraves no uso do método de triagem por cores na Atenção Primária à Saúde
Em Ribeirão Preto, maioria dos enfermeiros do SUS que participaram da pesquisa se sentem inseguros ao usar o protocolo de classificação de risco que usa as cores azul, verde, amarelo, laranja e vermelho para ordenar atendimentos
Uma pesquisa realizada pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP com 15 enfermeiros do Núcleo de Educação Permanente e Humanização (NEPH) do Departamento Regional de Saúde de Ribeirão Preto mostrou que muitos deles se sentem inseguros em utilizar o protocolo de classificação de risco na Atenção Primária à Saúde (APS). Trata-se de um protocolo que usa cores para classificar a prioridade dos atendimentos. A vermelha classifica os emergenciais; a amarela, os urgentes; a verde, os pouco urgentes; e o azul, os não urgentes. Esses resultados destacam a necessidade de os cursos de formação profissional estarem mais articulados com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).
O protocolo de classificação de risco (também chamado de ACCR, sigla para Acolhimento com Classificação de Risco) é um método de triagem usado mundialmente, sobretudo nos serviços de urgência e emergência em saúde. É visto como uma forma de organizar a demanda espontânea (procura dos usuários por atendimento sem agendamento prévio) e, por meio dela, o profissional de saúde avalia e direciona os usuários que procuram atenção para a forma de atendimento mais adequada.
Ele é baseado no Sistema de Manchester, um método que procura ordenar os atendimentos conforme o potencial de risco, agravos à saúde ou grau de sofrimento, priorizando os casos de maior gravidade. É dividido em, pelo menos, quatro cores, que indicam tempos máximos para o primeiro atendimento.
Os cientistas notaram lacunas de conhecimento sobre aspectos clínicos que envolvem a tomada de decisão no protocolo de classificação de risco, a gestão do protocolo na Atenção Primária à Saúde (APS) e o papel do enfermeiro e da equipe no processo de trabalho. As contradições históricas, estruturais e culturais do modelo de cuidado proposto pelo SUS também foram apontadas pelos voluntários.
Caroline Silva Morelato, enfermeira e primeira autora do estudo, contou ao Jornal da USP que a APS atende usuários com diferentes realidades. “Além das demandas rotineiras, temos as mulheres vítimas de violência doméstica e abuso sexual e pessoas em situação de rua, por exemplo. Precisamos ter um profissional capacitado para fazer esse tipo de avaliação também.”
Caroline Silva Morelato - Foto: Reprodução/Currículo Lattes
“Os resultados desse estudo apontam que os enfermeiros apresentam dificuldades em compreender o protocolo na APS, possivelmente porque os cursos de graduação centram-se, majoritariamente, em disciplinas dos ciclos básicos e profissionalizantes desarticulados dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)”, relata Rosângela Andrade Aukar de Camargo, professora da EERP e orientadora do estudo. “E também porque ainda persiste um processo de aprendizagem racionalista e instrumental desprovido de significado, de reflexão, de autonomia, sem a sua devida contextualização e problematização.”
Inseguranças na classificação de risco
As limitações de aprendizagem que apareceram – e que geram inseguranças no ACCR – foram: dor torácica de início súbito em hipertensos, diabéticos e cardiopatas; dor de cabeça ou tontura e alteração de sinais vitais; perda de força, movimento ou sensibilidade de parte do corpo e crise convulsiva. Todos esses tópicos são referentes à cor vermelha.
Na cor amarela, os casos de gestantes com qualquer sintoma e febre (temperatura axilar de 39º Celsius) são os que mais despertam dúvidas para os enfermeiros. Já na cor verde, as situações que envolvem dor crônica foram os mais citados.
Finalmente, na cor azul, problemas ou queixas que se prolongam por mais de 15 dias foram destacados pelos participantes da pesquisa.
Com a reformulação da Política Nacional de Humanização (PNH) pelo Ministério da Saúde em 2005, alguns serviços de APS no Brasil já adotaram essa estratégia de organização, e o enfermeiro é o profissional indicado para realizar a consulta inicial e a triagem dos usuários.
De acordo com o estudo de Caroline, espera-se que o profissional que atua nessa área possua habilidades para promover escuta qualificada, avaliar, registrar correta e detalhadamente a queixa, o trabalho em equipe, o raciocínio clínico, a agilidade mental para a tomada de decisões, assim como ter a capacidade de fazer os devidos encaminhamentos na rede assistencial para que se efetive a continuidade do cuidado.
A Atenção Primária à Saúde é, geralmente, a porta de entrada para o SUS no Brasil. Caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução, cuidados paliativos e vigilância em saúde. Fazem parte dela as Unidades Básicas de Saúde (UBS), a Equipe de Saúde da Família (ESF), o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e os agentes comunitários de saúde.
Análise aprofundada
Para investigar mais a fundo essa realidade, Caroline iniciou seu projeto de mestrado com uma revisão de literatura. Foram identificados 114 estudos e, após a aplicação dos critérios de inclusão, foram selecionados 30 trabalhos – e apenas três deles abordavam a atuação do enfermeiro brasileiro na ACCR. Com esses resultados, Caroline partiu para realizar uma pesquisa qualitativa, utilizando técnica de coleta de dados e análise de conteúdo temática.
Foram incluídos 15 enfermeiros que atuam há pelo menos seis meses na APS e são interlocutores no seu município do Núcleo de Educação Permanente e Humanização (NEPH) do Departamento Regional de Saúde de Ribeirão Preto. O Núcleo é um espaço coletivo que discute a humanização, a educação permanente em saúde, além de questões que envolvem a gestão para o enfrentamento de problemas locais e regionais, como foco na formação dos trabalhadores.
Do total de participantes, 87% eram do sexo feminino, com média de 39 anos de idade. A média de tempo de atuação na enfermagem era, em média, de 12 anos (80% trabalhavam exclusivamente na APS e em hospital e 1 atuava na APS e na educação como docente em curso de técnico de enfermagem). Além disso, 73% já trabalharam no pronto atendimento e 80% declararam conhecer o protocolo de Manchester, mas relataram nunca o terem utilizado.
A coleta de dados foi realizada entre junho de 2016 e agosto de 2017 em três etapas. Na primeira, houve observação dos enfermeiros em 12 reuniões, cujo objetivo foi ouvi-los sobre as inquietações e problemas relativos ao ACCR.
Na segunda etapa, os participantes responderam a um questionário sobre o Protocolo de Manchester para identificar o conhecimento individual sobre ACCR. Para finalizar, foi realizada uma discussão em grupo, também chamada de grupo focal, para compreender coletivamente as lacunas do ACCR.
Na análise, o material proveniente do questionário e da discussão em grupo foi agrupado por semelhanças e diferenças, tais como a necessidade de articulação do conhecimento teórico e prático sobre o ACCR e a necessidade de compreender as contradições que permeiam a construção do modelo de atenção do SUS.
Como um dos resultados, foi visto que o enfermeiro demonstra comprometimento e responsabilidade com a unidade que trabalha e procura ser resolutivo, mas percebe que não é competente para tomar decisões que poderão acarretar riscos aos desfechos clínicos dos usuários da APS. “Muitos nunca ouviram falar do Sistema de Manchester relacionado à urgência e emergência, ou seja, desconheciam que já existia todo um protocolo para atenção primária”, relata Caroline.
A lacuna de conhecimento do sistema de triagem de Manchester na APS causa desconfiança e medo de que as ações programáticas já desenvolvidas nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e Equipes de Saúde da Família (ESFs) possam ser descaracterizadas ao absorverem o atendimento da demanda espontânea.
“Notamos a necessidade do enfermeiro aprender sobre a organização do fluxo da unidade de saúde a partir das demandas inesperadas, inerentes à própria vida, e propiciar o envolvimento da equipe no ACCR com o protocolo de Manchester”, exemplifica Rosângela. “Isso significa desenvolver habilidades para reconhecimento de sinais e sintomas que permitam fundamentar as ações da equipe e oferecer um suporte científico para suas possíveis decisões, além de fortalecer o comportamento ético e social, porque constrói um processo de trabalho consciente e coletivo a partir dos princípios que sustentam o cuidado em rede.”
Continuidade
O projeto de mestrado de Caroline também previa o desenvolvimento de um protótipo de serious game sobre Acolhimento com Classificação de Risco. O objetivo era propor soluções interativas, assim como consta na Política de Humanização em Saúde, do Ministério da Saúde. Mas, como conta Caroline, a criação ficou inviável por questões técnicas.
A enfermeira ingressou no doutorado recentemente e o seu projeto prevê a criação de um infográfico interativo. “Ele é bem simples: mostra o paciente chegando no serviço de saúde e como o enfermeiro deve lidar com as demandas espontâneas no APS”, conta.
Com a pandemia, a pesquisadora inseriu na ferramenta informações sobre a prevenção da covid-19. “Ressaltamos a importância de se ter um ambiente ventilado no serviço de saúde, além da recomendação correta no uso dos equipamentos de proteção”, explica a poesquisadora.
De acordo com a professora Rosângela, espera-se que o infográfico seja um recurso didático que favoreça o diálogo dos profissionais da saúde sobre o tema, ao refletir criticamente e problematizar no coletivo o contexto onde ocorre o acolhimento. “Busca-se, com isso, uma conscientização do trabalho e comprometimento com os princípios do SUS”, completa.
Mais informações: e-mail caroline.morelato@usp.br, com Caroline Silva Morelato
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