Documentos revelam como era realizado o controle político e ideológico na USP durante a ditadura militar

Uma assessoria funcionou clandestinamente na Universidade entre 1972 e 1982 vigiando atividades de docentes, alunos e funcionários. Um dos casos mais notáveis resgatados em pesquisa foi o impedimento da contratação do arquiteto Oscar Niemeyer como docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Estrutura do prédio da Reitoria, no início da década de 1950, onde funcionou a Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi) entre 1972 e 1982. Foto: Reprodução/PUSPC-USP

 31/10/2022 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 03/11/2022 as 16:25

Texto: Pedro Ferreira

Arte: Adrielly Kilryann e Rebeca Fonseca

Entre 1972 e 1982, a Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi) funcionou de maneira clandestina dentro da USP. Em meio à ditadura civil-militar instaurada no Brasil, o órgão realizava o controle político e ideológico alinhado com os interesses dos serviços de vigilância estaduais e federais junto à Reitoria. Com o intuito de produzir um instrumento que auxiliasse em outros estudos sobre o tema, a pesquisadora Márcia Bassetto Paes, doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, recuperou e catalogou documentos emitidos e recebidos por essa assessoria. 

Na tese de doutorado Arquivo da sala ao lado: catálogo da correspondência entre a Universidade de São Paulo e os órgãos de segurança (1967-1989), orientada pela professora Ana Maria de Almeida Camargo e defendida em agosto de 2022, Márcia organizou um inventário dos documentos enviados pela assessoria para os órgãos encarregados de vigiar as atividades de docentes, alunos e funcionários da USP.

Em entrevista ao Jornal da USP, a pesquisadora conta que conseguiu recuperar cerca de 800 documentos oficiais da Aesi que mostram o funcionamento da assessoria e que, agora, compõem o catálogo pensado para viabilizar novas pesquisas envolvendo o período ditatorial. “Os documentos reforçam o que foi levantado durante a Comissão da Verdade da USP e expõem os mecanismos utilizados para realizar a perseguição dentro da instituição”, afirma.

À esquerda, notificação da instalação da Assessoria Especial de Segurança e Informação na USP em 20 de outubro de 1972. À direita, o pedido de levantamento de informações do professor José Carlos de Paula Carvalho, cogitado para assumir um cargo na Faculdade de Educação - Fotos: Reprodução

O arquivo da sala ao lado

Criada em 1972 durante a gestão do ex-reitor Miguel Reale, a Aesi funcionava na sala ao lado do gabinete da Reitoria. Seguindo as diretrizes do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Ministério da Educação e Cultura, a assessoria era responsável pelo monitoramento de reuniões ocorridas nas dependências da Universidade, o controle das publicações distribuídas nos institutos e a interferência nos processos de contratação de funcionários e docentes e nos de concessão de bolsas a estudantes.

Em um dos casos mais notáveis resgatados por Márcia, houve o impedimento da contratação do arquiteto Oscar Niemeyer para o cargo de docente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Além disso, houve o enquadramento de José Marques de Melo, professor e ex-diretor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), no Decreto-Lei nº 477, que estabelecia infrações a professores, alunos e funcionários de instituições de ensino públicas e privadas que participassem de movimentos políticos contrários ao regime.

“Uma das características dos governos autoritários é o registro de tudo, para que haja um controle eficaz”, explica a pesquisadora. “Então, numa época em que não havia computadores, produziu-se muita papelada, sendo que esses órgãos de vigilância guardaram cópias desses documentos.” Os papéis, boa parte já digitalizados, foram encontrados através do Arquivo Nacional, que abriga o Fundo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) desde a reabertura democrática. Alguns arquivos danificados puderam ser recuperados graças ao uso de softwares de edição de imagem.

Márcia também acessou documentos que se encontravam na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas teve acesso negado ao acervo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Por conta de um decreto assinado em 2019 durante o governo Bolsonaro, eu somente poderia ter acesso aos documentos se meu nome constasse neles”, conta. A pesquisa se estendeu a outras universidades com o intuito de encontrar materiais recebidos pelos órgãos equivalentes à Aesi e analisar correspondências que poderiam envolver a USP.

Márcia Bassetto Paes – Foto: Arquivo pessoal

Após dez anos de funcionamento, o volume original de documentos que registravam as atividades da Aesi foi queimado em 1982, pois, segundo declarações do chefe de gabinete do reitor Antônio Hélio Guerra Vieira, não teriam valor histórico.

Comissão da Verdade da USP

Criada pela Portaria GR nº 61721, publicada no Diário Oficial do Estado no dia 8 de maio de 2013, a Comissão da Verdade da USP teve como objetivo investigar as violações aos direitos humanos que atingiram alunos, docentes e funcionários da universidade durante a ditadura civil-militar. Foi a primeira vez em que se reuniu documentos que comprovavam a existência de uma assessoria especial dentro da universidade. 

Composta com sete docentes, a comissão gravou 41 entrevistas, transcreveu 47 e reuniu por volta de 180 documentos. Os trabalhos resultaram na publicação de dez volumes (veja no final do texto) que abordam o funcionamento da Aesi, os mandados de segurança, casos de mortos e desaparecidos, depoimentos de ex-estudantes e as fontes documentais, além de esmiuçar as perseguições ocorridas nos espaços da Escola de Comunicações e Artes (ECA), FFLCH, FAU, Faculdade de Medicina (FMUSP) e Faculdade de Direito (FD). A partir dos dados obtidos na Comissão Nacional da Verdade, chegou-se à conclusão de que 47 pessoas dadas como mortas ou desaparecidas durante o período possuíam vínculo com a USP, sendo 39 alunos, seis professores e dois funcionários.

Janice Theodoro da Silva, professora titular aposentada da FFLCH, assumiu a presidência da comissão em 28 de maio de 2014. Ela destaca a relevância da recuperação de arquivos para a confirmação dos relatos e os registros da perseguição política e ideológica. “Só se tinha informações sobre as prisões e torturas a partir dos depoimentos ou dos processos jurídicos, por isso a importância da documentação como prova do que foi dito, pois nem sempre a perseguição deixava rastros”, afirma a professora ao Jornal da USP. Os pesquisadores analisaram os arquivos do Dops e os acervos do SNI. Através da Lei da Transparência, sancionada em 18 de novembro de 2011, os documentos tornaram-se abertos para consulta pública.

Janice expressa a relevância do relatório publicado pela comissão devido às pistas que ele fornece sobre o órgão ligado ao SNI para a investigação dos casos ocorridos dentro da Universidade. “Diferente de outros autoritarismos latino-americanos, a ditadura no Brasil tinha uma preocupação legal e utilizava o Direito administrativo como um mecanismo para censurar e perseguir”, explica. 

Janice Theodoro da Silva – Foto: Reprodução/YouTube

“Peixe vivo”

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Márcia Bassetto Paes foi aluna do curso de História na USP entre 1976 e 1979, ano em que trancou a matrícula, mas manteve seu vínculo com a Universidade. Ingressou na Liga Operária, organização trotskista fundada em 1972, para se organizar politicamente e ter mais fundamentação teórica para sua militância. No dia 28 de abril de 1977, ela e dois companheiros da organização, Celso Brambilla e José Maria de Almeida, planejavam distribuir panfletos com as palavras de ordem “contra a carestia” e “restauração das liberdades democráticas” aos trabalhadores de fábricas da região do ABC Paulista, por conta do feriado do Dia do Trabalhador, em 1º de maio. Porém, pela madrugada, os três foram abordados e presos por policiais militares. “Fomos truculentamente algemados e colocados na ‘gaiola’ do camburão e, em seguida, levados para uma delegacia na cidade de Mauá”, conta Márcia no volume 9 do Relatório Final da Comissão da Verdade da USP

Após a passagem pela delegacia, os três foram levados ao prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), no centro da capital paulista, onde foram presos e torturados por vários dias. Em seu depoimento à comissão, Márcia relata a ocasião em que foi retirada das dependências do prédio por dois policiais civis cujos codinomes eram Ronnie Von e Capeta. Ela foi levada para uma estrada afastada da área urbana e espancada pelos oficiais, que foram interrompidos por uma voz no radiotransmissor do carro que ordenava aos policiais voltarem “com o peixe vivo”. De volta ao Deops, após dez dias de incomunicabilidade, Márcia e seus companheiros foram submetidos a tratamentos médicos para esconder as marcas das torturas.

No dia 16 de junho, Márcia foi transferida para o presídio do Carandiru, onde permaneceu até o relaxamento de sua prisão preventiva, em 21 de julho. Em 29 de novembro, as denúncias foram julgadas improcedentes e ela foi absolvida, juntamente com os companheiros.

 Para mais informações, e-mail marcia.paes@usp.br, com Márcia Bassetto Paes


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