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Intervenções humanas na Amazônia podem estar levando os recursos hídricos dessa região a passar por um processo de “lentificação”. Nas áreas desmatadas, ambientes de água parada – lagoas, poças, várzeas e represas – estariam se tornando mais frequentes do que os de água corrente como rios e córregos. A constatação é de uma pesquisa da USP feita na Bacia do Alto Xingu, no Mato Grosso. Além das mudanças nas paisagens amazônicas em áreas de pastagens e cultivo agrícola, os pesquisadores observaram também impacto na biodiversidade. Nos ambientes “lênticos”, houve a proliferação de algumas espécies (anfíbios e peixes) bem adaptadas a esses habitats.
“O fenômeno da ‘lentificação’ não implica necessariamente uma expansão de ambientes de água parada de alta qualidade. Ao contrário, muitos destes ambientes são aquecidos, assoreados e contaminados por fertilizantes e agrotóxicos”, explica ao Jornal da USP o professor de Gestão Ambiental Luis Schiesari, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e coordenador do estudo. A pesquisa de campo ocorreu entre 2011 e 2013 e um artigo sobre o assunto, intitulado Ponds, puddles, floodplains and dams in the Upper Xingu Basin: could we be witnessing the ‘lentification’ of deforested Amazonia?, foi publicado em junho de 2020 na revista Perspectives in Ecology and Conservation.
Segundo o pesquisador, na Amazônia, há pelo menos três fatores combinados que estariam influenciando nesse processo: a construção de barragens e de cacimbas (poças para acúmulo de água para os rebanhos de gado); a elevação do lençol freático e a compactação do solo, resultante do desmatamento.
Estudos citados no artigo mostram que além das barragens de grande porte construídas para fins de usinas elétricas, como a de Belo Monte, a Bacia do Alto Xingu tem, sozinha, cerca 10 mil pequenas barragens construídas em áreas desmatadas para fornecer água ao gado e gerar eletricidade para consumo local. Outro estudo relata ainda a existência na Bacia Amazônica de 154 barragens hidrelétricas em operação, 21 em construção e 277 planejadas. “Tanto as grandes barragens quantos as pequenas alteram o regime de escoamento das águas. São fatores reconhecidamente como mais importantes que levam à ‘lentificação’”, diz o pesquisador.
O outro fator é a elevação do lençol freático ou elevação do limite superficial das águas subterrâneas. Schiesari explica que em ambientes desmatados, a substituição de árvores de grande porte, com raízes profundas e copas frondosas, por capim e soja reduz a evapotranspiração (perda de água do solo por evaporação e a perda de água da planta por transpiração). “Nestas condições, uma fração maior da água de chuva acumula como água subterrânea, promovendo uma expansão das várzeas de riachos e das muitas poças a elas ligadas”, diz.
E, por último, mas não menos importante, é a compactação dos solos em áreas desmatadas, diz o pesquisador. Estas estão associadas ao pisoteamento do gado, ao tráfego de maquinários e construção de estradas. “A compactação do solo em área de pastagem animal é de 8 a 162 vezes maior do que em florestas, o que favorece a formação de poças temporárias”, diz.
Sapos, rãs e pererecas
Com o represamento da água, a tendência é que a fauna e a flora sejam impactadas. Para demonstrar que a “lentificação” das águas estaria afetando a biodiversidade, os pesquisadores fizeram o levantamento de espécies típicas de água paradas. Nesta busca, foi possível observar aumento populacional de anfíbios (sapos, pererecas e rãs) e de peixes como carás, lambaris e rivulídeos, que comumente vivem em ambientes aquáticos muito rasos e isolados de rios. “Os anfíbios são excelentes indicadores de alterações hidrológicas porque a maior parte das espécies se reproduz em ambientes de água parada”, relata o artigo.
Nas poças temporárias formadas pela compactação do solo em platôs (superfícies elevadas) desmatados, foram encontradas 12 espécies de anfíbios – as pererecas Boana albopunctata e as rãs Physalaemus cuvieri, por exemplo, – que não ocorriam em platôs florestados. Nas várzeas desviadas de riachos, a abundância do peixe Melanorivulus megaroni dobrou comparado aos ambientes florestados.
Schiesari lembra ainda da relação entre impacto da biodiversidade e a saúde humana. Segundo ele, a manutenção de ecossistemas saudáveis em equilíbrio com a produção de alimentos é o grande desafio da humanidade. As constantes e longas intervenções humanas na natureza implicam o surgimento da expansão de doenças. Segundo o pesquisador, “a reorganização da biodiversidade que ocorre com a ‘lentificação’ pode favorecer o aumento populacional de espécies responsáveis pela transmissão de doenças como a esquistossomose e a malária, flagelos dos colonos em ambientes desmatados”, finaliza.
Mais informações: e-mail lschiesa@usp.br, com Luis Schiesari
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