As relações étnico-raciais têm sido tratadas predominantemente no Brasil como um tema da história (nos estudos sobre a escravidão e a reorganização do país após a abolição), da sociologia (nas pesquisas sobre as raízes e atual configuração da sociedade brasileira), da economia (em análises sobre perfil de renda, participação no mercado de trabalho etc.) ou do direito (nas interpretações da Constituição e do Código Civil). Mas, apesar da evidente repercussão psicológica das questões de raça, desigualdade racial, preconceito e discriminação, o assunto foi menos investigado no âmbito da psicologia.
Uma pesquisa conduzida pelo psicólogo Alessandro de Oliveira dos Santos, professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia (IP) da USP, vem, de certa forma, preencher essa lacuna. Trata-se do estudo Atuação do psicólogo no tema das relações étnico-raciais: um estudo na Região Metropolitana de São Paulo, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por meio do programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes.
“Minha familiaridade com o tema começou, por assim dizer, no nível da pele, porque, em meus anos de estudo universitário, fui um estudante negro em uma classe de professores brancos. E, agora, sou um professor negro em uma classe de alunos brancos”, disse Santos à Agência Fapesp.
Seu estudo desenvolveu-se segundo três eixos temáticos: história do pensamento psicológico brasileiro sobre as relações étnico-raciais; inserção do tema das relações étnico-raciais no currículo e pesquisa sobre as concepções de professores e alunos acerca de raça e etnia, diferenças e desigualdades; e atuação dos psicólogos quanto às relações étnico-raciais.
A coleta de dados incluiu levantamento bibliográfico e análise de conteúdo de documentos, livros, artigos, teses e dissertações, e entrevistas qualitativas com 46 profissionais que atuam nas áreas de Saúde Pública (centros de atenção psicossocial e hospitais), Clínica Psicológica (consultórios particulares), Recursos Humanos (empresas e órgãos públicos), Assistência Social (centros de referência de assistência social e outros órgãos públicos) e Educação (escolas públicas e privadas)
O mito da democracia racial
A Constituição de 1988 tipificou o racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão. E as Leis 10.639, de 2003, e 11.645, de 2008, estabeleceram o ensino obrigatório da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados. Mas o avanço da legislação não tem impedido que discriminações e ofensas de cunho racial ocorram diariamente no Brasil e que o discurso racista, explícito ou camuflado, se dissemine pelas redes sociais, seja acolhido com condescendência na mídia e se expresse até mesmo nos órgãos máximos do Poder Legislativo.
Apesar do mito da “democracia racial”, nunca é demais lembrar que a sociedade brasileira se estruturou sobre o regime escravista, com a escravização do indígena primeiro e do africano depois. E que mais de três séculos de escravidão deixaram marcas muito profundas no País.
O Direito Romano, que “legitimou” a escravidão antiga, negava ao escravo a condição humana. O escravo era coisa, não pessoa. E, como coisa, podia ser comprado ou vendido, doado ou emprestado, alugado ou hipotecado, espancado ou morto, segundo o arbítrio de seu proprietário. O “argumento” da não humanidade ou de uma humanidade de segunda classe voltou a ser invocado para “legitimar’ o escravismo colonial moderno, instaurado na América após a conquista europeia.
A pesquisa de Santos investigou as relações étnico-raciais em geral, com ênfase na relação entre brancos e negros. “Na esfera do discurso científico, a humanidade do negro só foi explicitamente admitida no Brasil em 1900, mais de uma década depois da abolição da escravidão, no livro Os Africanos no Brasil, publicado em 1932, do médico Raimundo Nina Rodrigues [1862 – 1906]”, informou Santos. Herdeiro da antropologia positivista do italiano Cesare Lombroso (1835 – 1909), Nina Rodrigues foi o primeiro a investigar as características psicológicas dos escravos e ex-escravos, a “massa negra”, considerada por uma parcela da sociedade brasileira um “elemento perigoso” e, por isso, sujeito ao controle e à exclusão social. O olhar de Nina Rodrigues sobre esse grupo social forneceu os elementos necessários para a configuração do negro como sujeito psicológico.
“Seu pensamento é certamente racista segundo os padrões atuais. Era todavia inovador no contexto da época, pois foi o primeiro a reconhecer a subjetividade do negro”, afirmou o psicólogo. “Até Nina Rodrigues, os negros eram vistos como massa indiferenciada. A nova abordagem proposta por ele permitiu que a psicologia passasse a enxergá-los como seres humanos.” Nina Rodrigues atribui subjetividade aos negros, ressalvando, porém, que se tratava de uma subjetividade “primitiva” e que, por isso, os negros experimentavam o transe de possessão nos rituais do candomblé.
Segundo o pesquisador, é importante destacar que, assim como as ciências sociais, também a psicologia se estruturou no Brasil a partir de estudos sobre as relações étnico-raciais. “Quando se observam os primeiros autores que ministraram a disciplina Psicologia Social no Brasil – Raul Briquet, Arthur Ramos, Donald Pierson –, verifica-se que todos eles estavam ligados aos estudos das relações étnico-raciais, com ênfase nas relações entre brancos e não brancos [negros, indígenas, orientais]”, argumentou.
As ideias psicológicas entraram no Brasil por meio da medicina e da educação. Além de Nina Rodrigues, também Briquet e Ramos eram médicos de formação. Já o norte-americano Pierson era sociólogo. Obteve seu doutorado na Universidade de Chicago com uma pesquisa sobre as relações étnico-raciais na Bahia, realizada entre 1935 e 1937. De volta ao Brasil, foi por muitos anos professor na Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
“No período compreendido entre as décadas de 1930 e 1950, ocorreu a desconstrução do determinismo biológico na psicologia elaborada no Brasil. Terminada a Segunda Guerra Mundial, a revelação dos crimes nazistas e do horror do Holocausto pôs em xeque a ideia de raça como categoria biológica, que havia alimentado um racismo dito ‘científico’. Nesse contexto, a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] decidiu promover um estudo sobre o Brasil, no qual, aparentemente, teria havido uma ‘acomodação pacífica’ das relações étnico-raciais entre brancos e negros. Quem articulou esse estudo foi Arthur Ramos, que era, então, diretor do Departamento de Ciências Sociais da Unesco em Paris”, relatou Santos.
Várias pesquisas subordinadas a esse estudo foram realizadas em São Paulo, lideradas pelo sociólogo francês Roger Bastide (1898 – 1974), com a participação de seu discípulo Florestan Fernandes (1920 – 1995). Conforme Bastide e Fernandes, com a transição do sistema escravista para o sistema capitalista, o preconceito de cor, que antes justificava o trabalho escravo, passou a justificar a desigualdade social na sociedade de classes.
“Para participar desse estudo, foram convidadas duas psicólogas: Aniela Meyer Ginsberg e Virgínia Leone Bicudo. Filha de uma imigrante italiana e de um trabalhador negro, Virgínia Bicudo foi a primeira mulher a ser aceita na Sociedade Brasileira de Psicanálise”, destacou o pesquisador. “Para o projeto da Unesco, ela realizou um trabalho bastante inovador, pesquisando como os alunos dos grupos escolares se relacionavam com seus colegas, e manifestavam atitudes de intimidade, aproximação ou rejeição, com base na cor da pele. E qual era a influência familiar na formação dessas preferências e preconceitos.”
Com a instauração da ditadura militar em 1964, e mais ainda depois do fechamento total do regime, no final de 1968, o tema das relações étnico-raciais passou a ser tratado como questão de segurança nacional, e posto fora de discussão. “Somente a partir da década de 1980, e justificada pela abordagem cultural, ocorreu uma retomada dos estudos, com a publicação pela psicóloga francesa radicada no Brasil Monique Augras de seu livro O duplo e a metamorfose. Nessa obra, ela empregou, pela primeira vez o conceito de arquétipo da psicologia analítica de Carl Gustav Jung [1875 – 1961] para interpretar a mitologia ioruba e descrever os mitos dos orixás [Xangô, Oxóssi, Oxum, Iemanjá etc.]”, mencionou Santos.
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Lutas identitárias
Na década de 1990, os estudos adquiriram uma conotação mais política, associando-se às lutas identitárias e contra o preconceito. Nesse período, ocorreu também uma virada epistemológica, com os estudos sobre branquitude e branqueamento. Pesquisadores brancos entenderam que, ao fazer do negro ou do indígena o seu tema de estudo, eles estavam, mais uma vez, produzindo o “outro”, em uma relação assimétrica entre sujeito e objeto. E voltaram o olhar para si mesmos, colocando a autoimagem do branco em questão.
“O livro que marcou esse giro foi Psicologia social do racismo, de Maria Aparecida Silva Bento e Iray Carone. Hoje, o tema vem sendo trabalhado e desenvolvido por Lia Vainer Schucman”, disse Santos [leia aqui entrevista com Schucman publicada na Agência Fapesp].
A pesquisa do próprio Santos insere-se neste momento de revisão e adensamento da reflexão sobre o tema. “Entrevistamos alunos e professores de psicologia para saber como pensam as relações étnico-raciais. Raça e etnia são categorias importantes para pensar comportamento e subjetividade? Cabe destacar que, apesar da tradição da psicologia no estudo do tema, tradição demonstrada em nossa história do pensamento psicológico brasileiro sobre as relações étnico-raciais, o que realmente estimulou a discussão sobre o assunto na universidade foram os programas de ação afirmativa e os sistemas de bonificação. Foi quando surgiu a proposta de cotas raciais que o debate se acirrou, com posicionamentos muitas vezes mal fundamentados”, afirmou o pesquisador.
“Um aspecto que chamou minha atenção nas entrevistas foi o fato de os alunos utilizarem a palavra raça apenas para se referir aos negros. Isso mostra que a ‘branquitude’ como construção de identidades brancas ainda não emergiu como algo a ser percebido. A percepção de que os brancos também são sujeitos racializados ainda é incipiente. Talvez este silêncio dos alunos sobre o lugar do branco na sociedade tenha associação com o discurso da democracia racial que a sociedade brasileira criou, como uma forma de aliviar os brancos da responsabilidade pelas desigualdades”, acrescentou.
Quanto à atuação dos psicólogos, Santos entrevistou profissionais de várias áreas: Clínica, Recursos Humanos, Atendimento à Saúde. “O tema é importante em todas essas áreas. Os psicólogos clínicos precisam lidar com sua própria racialidade, na maioria das vezes, com sua branquitude, já que temos uma grande maioria de psicólogos brancos. Os psicólogos organizacionais deparam com o fato nu e cru de que, a despeito da legislação, raça continua a ser um dado importante na decisão de contratação ou não contratação de funcionários pelas empresas. Os psicólogos dos serviços de atendimento à saúde devem lidar com questões de saúde que são específicas para os diferentes segmentos da população: brancos, negros, indígenas, asiáticos”, explicou.
Segundo o pesquisador, a análise mostrou que os psicólogos entrevistados tinham pouco conhecimento dos aspectos históricos e sociais das relações étnico-raciais no País, bem como dos efeitos psicossociais do racismo. “Os entrevistados autoclassificados brancos não se perceberam como indivíduos racializados, atribuindo a categoria ‘raça’ apenas aos outros grupos, aos negros em especial”, exemplificou.
“Quando a Psicologia considera o ser humano como fonte de seu próprio sofrimento ou considera esse sofrimento parte inerente de sua existência, com o qual se deve aprender a conviver, não dá o devido peso aos processos e ao meio social na criação de modos de ser, pensar e agir. Esse ser humano ‘abstrato e universal’ de que se ocupam muitas teorias ensinadas na graduação de Psicologia traz implicitamente o pressuposto de que o ser humano é único, com características de certa forma fixas, independentemente das condições em que se encontre, e que as categorias utilizadas atualmente para compreender as desigualdades, como raça e gênero, não são necessárias na produção e atualização dessas teorias. E isso acaba contribuindo para legitimar as desigualdades”, concluiu.
José Tadeu Arantes/Agência Fapesp