Quebra de preconceitos com relação ao tambor permitiu aos alunos entenderem a relação do instrumento com o dia a dia do escravizado e foi se dissolvendo a associação pejorativa do tambor à macumba - Ilustração: Emerson Freire
Usando simplesmente um tambor de origem africana, a musicista e pesquisadora Maria Teresa Loduca realizou um experimento em que buscou colocar alunos de escolas públicas de São Paulo em contato a música africana e, ao mesmo tempo, promover a aceitação da cultura afrodescendente. O trabalho de Maria Teresa durou cerca de três anos e foi realizado na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação (FE) da USP, e na Escola Municipal Saturnino Pereira, ambas em São Paulo. Ao longo do estudo, a quebra de preconceitos com relação ao tambor permitiu aos alunos entenderem a relação do instrumento com o dia a dia do escravizado e foi se dissolvendo a associação pejorativa do tambor à macumba.
A musicista integra, desde 1995, a Orquestra Sinfônica Municipal de Santos, onde é trompista. Ao longo de sua carreira, ela aprimorou seus ouvidos e seu repertório sinfônico. “Sou uma operária do som, é o que se faz numa orquestra, porque a gente está ali para produzir aquele som, aquele timbre, naquele determinado momento”, descreve. Decidida a colocar sua experiência com a escuta a serviço da educação nas escolas públicas, a pesquisadora iniciou um novo aprendizado, desta vez no meio acadêmico.
Ela sempre se interessou pela metodologia do educador musical canadense Murray Schafer, que retrata o universo sonoro como uma grande paisagem, não levando em conta apenas os sons musicais, mas todos os ruídos e a forma como o sujeito se relaciona com o universo sonoro do entorno. A partir daí, ela deu início ao processo de construção, na sua pesquisa de campo, tomando contato com toda a diversidade da musicalidade que os adolescentes trazem para a escola.
A música negra
Esta nova incursão permitiu a Maria Teresa conhecer a música negra ancestral e contemporânea. “Descobri que tinha uma grande falha na minha formação, porque a música que eu sempre cultivei na minha vida era uma música racional, pensada, minuciosa, estudada e detalhadamente produzida”, conta. Em seu estudo, ela teve contato com pesquisadores de outras linguagens, a capoeira e o teatro negro e com o Movimento Hip-Hop. Esse convívio foi essencial para a elaboração e desenvolvimento de um trabalho significativo na escola com docentes e jovens. “Foi quando percebi o quanto a cultura negra é rica”, descreve.
Na pesquisa que envolveu as duas escolas, houve a experiência da docência compartilhada. Neste tipo de atividade o artista e professor constroem juntos o conteúdo a ser trabalhado com os estudantes. “Também é possível experimentar variados modelos de vivências culturais”, revela. No trabalho, os professores elaboraram juntos a parte teórica em sintonia com o tipo de vivência. “Numa vivência de samba, por exemplo, podem ser trabalhados temas como a proibição do samba, as origens deste ritmo, sua ligação com a cultura africana e afro-brasileira”, enfatiza.
Obstáculos
Mas nem tudo foi fácil, especialmente no início. A pesquisadora conta que passou por momentos complicados, tendo de interromper parcerias, em função de professores que não queriam trabalhar com a música negra. “Considero que foram atitudes inconscientes, mas que me ensinaram a lidar com a resistência”, lembra. Em alguns casos, outros professores a alertavam: “Se você aparecer na frente dos alunos com um tambor tenha certeza de que irão dizer que você vai fazer macumba”. A partir de então, a atenção da pesquisadora se voltou para a “macumba”. “Assumi que seria a professora que trataria este assunto abertamente, de maneira clara”, conta. Foram precisos muitos ajustes durante todo o processo, experiências chegaram a ser realizadas com dois artistas e professor em sala de aula.
Na fase final de sua pesquisa, Maria Teresa relata o quanto foi bem acolhida na Emef Saturnino Pereira, no bairro de Guaianases, na zona leste de São Paulo. Na região, 80% da população se declara negra. Numa nova etapa da pesquisa, Maria Teresa e a dançarina de break Cristiane Correia Dias lançaram a proposta Hip-Hop Nagô, letramentos rítmicos e sonoros, que tratou de temas como a Revolta dos Malês e tópicos da disciplina Língua Portuguesa, com ênfase na leitura, música e dança.
Ilustração: Emerson Freire
Sem preconceito
A desconstrução de estigmas com relação ao tambor fez com que os alunos compreendessem o lugar dele na rotina da população que foi escravizada. Pouco a pouco, foi se dissolvendo a associação preconceituosa do instrumento à macumba.
Houve revelações inéditas entre os alunos, e descobriu-se o silenciamento da religiosidade africana existente dentro da sala de aula. “Tínhamos alunos pertencentes ao candomblé, mas que ali na escola se colocavam contra o tambor, como forma de proteção, sabedores do quanto a cultura africana é discriminada”, lembra Maria Teresa. Mas, ao mesmo tempo, surgiram alunos que tinham intimidade com o tambor, eram conhecedores de vários toques e tinham familiaridade com a história do candomblé, inclusive. E foram aos poucos revelando a participação da família nos cultos da religiosidade africana, sentindo-se valorizados.
O objetivo maior do estudo de Maria Teresa, segundo ela descreve, é o cumprimento da LDB artigo 26 A, referente ao cumprimento da Lei 10.6393, e o ensinamento das culturas africanas e afro-brasileiras na escola.
A dissertação de mestrado Música negra na escola: um estudo sobre a ressonância dos tambores nas relações intersubjetivas foi produzida a partir de experiências de docência compartilhada e teve orientação da professora Mônica Guimarães Teixeira do Amaral, da FE. Participaram das atividades alunos dos 9º, 8°, 7º e 6º anos do ensino fundamental.
Mais informações: tecatrompa@gmail.com, com Maria Teresa
Mestre Valdenor, especial para o Jornal da USP