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No Brasil, tudo indica que a promoção da expansão de vagas em creche, para crianças de zero a 3 anos, por meio Organizações da Sociedade Civil (OSCs), como, por exemplo, as Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), tende a ser uma política pública permanente de educação infantil. Essa é a principal conclusão de uma pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e concluída por Zara Figueiredo Tripodi, atualmente professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
Dentre as razões explicativas para essa opção de oferta, o estudo aponta o resultado orçamentário municipal e o respectivo financiamento da educação como as variáveis mais fortemente relacionadas a essa lógica. As parcerias com o Terceiro Setor permitem que os municípios, responsáveis legais pela educação infantil, possam, por exemplo, transferir valores menores para as OSC’s, para custear as matrículas de creche, além de se constituir numa forma de fazer face a desafios como folha de pagamento e Lei de Responsabilidade Fiscal, já que essas questões ficam circunscritas à organização parceira.
Os resultados do trabalho foram divulgados em três artigos, publicados nos periódicos científicos Revista Brasileira de Educação, Cadernos de Pesquisa, em português e em inglês, e na Revista Educação. “A pesquisa traz uma análise bastante abrangente e empiricamente sólida, que discute como a oferta de creches é muito permeável por provedores privados”, aponta a coordenadora do CEM, professora Marta Arretche, que supervisionou o trabalho de Zara Figueiredo. “É um estudo muito respeitável porque são poucas as pesquisas realizadas sobre esse assunto que atingem esse nível de abrangência, em que não temos só um estudo de caso, mas uma amostra bem ampla”, acrescenta. A pesquisa contou com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com bolsa de pós-doutorado (Projeto n˚ 2015/14405-8). O CEM é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) dessa instituição.
Apesar de a parceria com entidades do Terceiro Setor serem vistas como uma maneira de dar mais agilidade ao Estado, no sentido de lidar com a demanda reprimida de vagas, aparentemente isso não tem ocorrido no caso das creches. Segundo apontou recente relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado pela imprensa, o Brasil não deve atingir a meta de ter metade das crianças de zero até 3 anos matriculadas em creches até 2024, medida que consta da meta 1, do Plano Nacional da Educação – PNE 2014 – 2024, estabelecido pela Lei n˚ 13.005/2014. Segundo o documento do TCU, apenas 31,9% das crianças dessa faixa etária estavam matriculadas em creches em 2016.
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Ainda de acordo com o relatório, a Região Norte enfrenta a situação mais grave: apenas 15,8% das crianças de zero a 3 anos estão nas creches. O Centro-Oeste registra 26,1%; o Nordeste, 28,8%; o Sudeste, 37,5% e o Sul é o que está em melhor posição, com 37,5% das crianças de zero a 3 anos que vivem na região matriculadas em creche naquele ano. A cidade de São Paulo é uma das exceções.
Historicamente, a educação infantil, especialmente na etapa creche, não apenas esteve ligada à assistência social, no Brasil, como se expandiu, em larga medida, por meio de arranjos de convênios entre entidades sociais sem fins lucrativos e o Estado. Apenas a partir da Constituição Cidadã de 1988 é que a educação infantil passa a ser entendida como um direito das crianças pequenas e dever do Estado em provê-lo, embora a Carta Magna tenha reconhecido apenas a pré-escola como direito público subjetivo – ou seja, somente essa etapa permite ao seu titular constranger judicialmente o Estado a ofertar a vaga, o que não tem impedido, entretanto, que os indivíduos recorram ao Judiciário mesmo no caso de creche, explica Zara Figueiredo.
Um segundo aspecto a ser considerado está na centralidade dos municípios, colocados como atores prioritários para ofertar as vagas em creche. “Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tem cerca de 7 milhões de crianças nessa faixa etária, e cerca de 4 milhões não estão na creche por falta de vaga e o responsável legal é, exatamente, o ente federado com menor capacidade fiscal”, acrescenta.
Pesquisa estudou 169 municípios, incluindo capitais
Diante desse cenário de demanda reprimida na fase de creche, de metas arrojadas a serem cumpridas até 2024 e municípios com baixa capacidade fiscal, a pesquisa buscou investigar como se daria a oferta de vagas em creche, pelas municipalidades, conforme explicitaram em seus Planos Municipais de Educação para a década de 2014 – 2024: se seria direta, ou seja, os municípios iriam utilizar a rede própria, por meio de infraestrutura e recursos humanos estatais, ou se iam fazê-lo nos moldes do que já era feito antes da Constituição, por meio do Terceiro Setor. Ela utilizou bancos de dados já criados pelo CEM e, também, do IBGE, para selecionar e construir uma amostra de municípios para o estudo.
A pesquisadora levou em consideração dados como o gasto per capita em educação, o Produto Interno Bruto (PIB) dos municípios, a população total e a capacidade estatal – no caso deste último, foi considerado como indicador a existência ou não de secretaria municipal de educação própria, pois isso supostamente permitiria à área da educação ter mais autonomia na elaboração e execução da sua política pública. A amostra totalizou 169 municípios, incluindo os municípios-capitais. Todos os selecionados têm planos municipais de educação e, alinhados à Lei n˚ 13.005/2014, estipularam a meta de expandir as ofertas de vagas em creche, de modo a atender pelo menos 50% das crianças de zero a 3 anos nas creches, até 2024.
Zara Figueiredo estudou detalhadamente os planos municipais de educação, para investigar de que forma os municípios explicitaram a intenção de ofertar as vagas. Nessa análise, a autora utilizou o conceito de permeabilidade estatal, desenvolvido inicialmente pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, nos anos de 1970, e, em 1990, retomado pelo pesquisador do CEM, Eduardo Marques. “A permeabilidade estatal pode ser definida como uma predisposição ou tendência do Estado a ser permeável a entidades e/ou atores não estatais”, explica.
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Ela optou por usar esse conceito, e não o de privatização, porque, neste último, as análises têm se restringido ao aspecto financeiro ou lobby, na relação do Estado com atores não estatais. “O conceito de permeabilidade teve uma contribuição importante para minha análise porque a interação entre Estado e atores não estatais, do Terceiro Setor, na oferta de vagas de creches, pode se efetivar por outras razões que não somente a financeira”, completa. Uma das hipóteses era relação entre coloração ideológica e opção pelo Estado ou Terceiro Setor, na efetivação ou não da parceria.
A análise dos planos municipais de educação permitiu observar uma forte tendência de ampliação da oferta de creche, de modo a atingir a meta do PNE, pela presença do Terceiro Setor. “Esta foi uma tendência geral, apareceu em todas as regiões do Brasil, embora mais delineada em alguns municípios que outros”, destaca. Além disso, a pesquisa mostra que boa parte dos municípios já possuía algum tipo de regulamentação para o funcionamento de Termos de Colaboração, Termos de Fomento, OS’s e Oscip’s.
Segundo ela, foi possível encontrar poucas exceções, nesse sentido. O município de Belém, por exemplo, optou no documento por não interagir com o Terceiro Setor. Quando elaborou seu plano, tinha 28% das crianças matriculadas em creche e precisa expandir em 22% as vagas para atingir a meta até 2024. “No plano, o município definiu que vai ofertar as vagas de forma direta, estatal”, aponta.
Como contraponto, o Distrito Federal e Belo Horizonte definiram estratégias que integram o Terceiro Setor de modo mais consolidado, considerando esse ator de modo decisivo nas estratégias da meta. Na cidade de São Paulo, a primeira versão do Plano Municipal previa a expansão do sistema exclusivamente via município. Contudo, substitutivos apresentados por vereadores e a consequente votação levou a que prevalecesse a expansão por meio, também, de parcerias.
Orçamento e ideologia partidária
De modo a compreender as razões das municipalidades optarem pelo Terceiro Setor, a pesquisadora foi buscar os fatores explicativos, já que, segundo ela, o PNE definiu que os municípios contariam com apoio financeiro e técnico da União e dos Estados para efetivarem as metas. Parecia haver, então, uma questão que ultrapassava o problema orçamentário. “Até mesmo cidades com mais capacidade estatal e fiscal como São Paulo decidiram aprovar esse modelo de parceria com o Terceiro Setor. Se, mesmo prevendo apoio de outros entes, os municípios explicitaram que iriam apelar para o Terceiro Setor para cumprir suas metas, então o problema não parecia estar, unicamente, na capacidade fiscal, no financiamento”, justifica.
Nessa análise, ela buscou evidências trazidas pela literatura sobre o tema, e, junto com outros pesquisadores do CEM, e professores da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), empregaram um modelo estatístico utilizando variáveis selecionadas para testar a hipótese de que outros aspectos importariam, para além do financiamento. Além da capacidade tributária e fiscal, ela trabalhou com o gasto total e per capita com educação, a capacidade estatal (presença de Secretarias de Educação próprias), e coloração político-partidária (usando como dado o prefeito e o partido que estavam no comando do município no ano referência de 2012).
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“Um dos resultados que obtivemos com a modelagem foi que, de fato, as variáveis resultado orçamentário e gastos com educação têm associação positiva forte com a opção de oferta de vaga em interação com o Terceiro Setor”, conta. No caso da coloração ideológico-partidária, a literatura tem relacionado partidos, à direita e à esquerda do espectro político, com tendências maiores ou menores a processos como o da privatização e parcerias com entidades privadas. “Quando rodamos o modelo, não notamos uma correlação significativa que explicasse o fenômeno pelo ponto de vista da coloração partidária. Isso não parece ter influenciado nas escolhas dos municípios por ofertar vagas de creche via organizações”, revela; embora chame a atenção para o fato da amostra relativamente pequena poder ter interferido no resultado.
No entanto, uma pergunta que teima em permanecer, em um primeiro momento, é: por que as parcerias com o Terceiro Setor poderiam ter algum efeito sobre o resultado orçamentário dos municípios? Não teriam eles que transferir valores para as instituições, de todo modo, para cumprirem a meta do PNE? Uma das respostas para esse questionamento pode ser pensada em termos de valores repassados para as OSC’s. Em 2018, por exemplo, o valor aluno/ano, para a etapa creche, em tempo integral, gira em torno de R$ 3.921,67. “Acontece que os municípios podem conseguir valores de conveniamento considerados por eles mais atraentes e, assim, terem a opção de menor repasse. Mas, fundamentalmente, os municípios deixam de lidar com folhas de pagamento de funcionários, construção e manutenção de prédios, sem contar os limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal”, responde.
Da Assessoria do Centro de Estudos da Metrópole
Mais informações: e-mail contato@centrodametropole.