Congada une santos católicos e saberes de antigos escravos

Antropóloga analisa a congada de São Sebastião do Paraíso, festa afrodescendente popular que tem influências portuguesas cristãs

 06/09/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 21/08/2018 as 17:02

Congada é uma festa de rituais e valores folclórica e religiosa de formação afro-brasileira – Foto: Cecília Araujo de Oliveira / Flickr

A congada de São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais, é uma festa afrodescendente popular que, a partir de influências portuguesas cristãs, resgata em seus rituais e cultos as memórias, os valores e os padrões culturais africanos. Isso é feito “por meio da homenagem a uma corte negra, uma África ancestral contraposta às emoções de dor e sofrimento atribuídas à escravidão”. Assim descreve Lilian Sagio Cezar em artigo na Revista de Antropologia da USP. A autora analisa, na congada, as memórias e “a criação de práticas religiosas, que ao longo de largo período de tempo, se mantiveram relativamente secretas enquanto forma de conhecimento que identificam e hierarquizam atores sociais nesta festa”.

As pesquisas, as observações dos rituais da congada de São Sebastião do Paraíso e as histórias de Fernando Aparecido Gonçalves, “capitão de terno e dançador, uma das lideranças mais respeitadas dentro da festa”, são o ponto de partida para o entendimento da autora sobre como “o negro mudou as inflexões figuradas nas mensagens católicas proferidas durante a festa a partir de suas próprias lógicas cosmológicas. Assim, tais festas constituem hoje lócus sociais em que memórias, valores e padrões culturais puderam ser preservados e recriados”, explica ela.

O negro mudou as inflexões figuradas nas mensagens católicas proferidas durante a festa a partir de suas próprias lógicas cosmológicas.” – Lilian Sagio Cezar

“Durante a escravidão, o negro foi vigiado e coagido em suas capacidades criativas e inventivas. O corpo constituiu, porém, o único meio e suporte do qual o negro escravo dispunha para ser, agir e se relacionar naquele contexto social”, por isso, as festas de congada são tão importantes, afirma ela. Hoje, segundo a pesquisadora, a congada de São Sebastião do Paraíso está inserida nas festas do natal, louvando, principalmente, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, o padroeiro dessa festa. “Tais santos são sequencialmente referenciados enquanto divindades que possuem caráter múltiplo, sendo, muitas vezes, assumidos como ancestrais comuns pelos dançadores.”

Tais festas constituem hoje lócus sociais em que memórias, valores e padrões culturais puderam ser preservados e recriados – Foto: Cecília Araujo de Oliveira / Flickr

Assim, a antropóloga sugere que a congada é “o resultado anual da bricolagem de rituais e valores religiosos que sintetizam elementos de um catolicismo arcaico às camadas de memórias de ensinamentos africanos que foram rememoradas e ressignificadas ao serem transmitidas pelos antigos escravos, considerados como ancestrais comuns pelos atuais dançadores da festa”.

Formada por grupos de dançadores chamados ternos, uma rainha perpétua, um rei congo, uma rainha conga, um vice-rei congo e duas princesas, a congada de Paraíso é o resgate da memória e a transmissão de conhecimento. E para os dançadores mais dedicados da congada, a memória “é a capacidade pessoal e individual de construir para si um repertório embasado nos ensinamentos possibilitados pela festa, calcados nas mensagens e exigências feitas pelas almas, guias e santos articulados às experiências, vivências, expectativas e respostas que precisam ser interpretadas e compreendidas à luz da própria festa e de seus código!”.

A congada foi a única indenização que os escravos receberam após a abolição da escravatura.”  – Fernando Aparecido Gonçalves, capitão de terno e dançador

Aos santos são feitos pedidos e promessas ao mundo “interditado aos vivos, solicitando a estas forças milagres”, “onde figuram os santos, orixás e almas ancestrais a partir de processos de cura e graça”, declara a autora, destacando que, ao homenagear os ancestrais nos cortejos dos ternos de congo e moçambique, os “reis e rainhas de promessa personificam ‘navios’ aptos a navegar pelo mundo dos ancestrais”, pela kalunga, “limiar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, simbolizada pelas águas do rio ou do mar”.

Nesse contexto, Lilian Cezar afirma que, segundo o capitão Fernando, “o rei é a potência que tem poder de mando e que é denominada ‘navio'”, explicando, em seu depoimento à autora, o significado da canção de congada em homenagem à Princesa Isabel ou Santa Isabel: “Essa Festa do Congado foi a indenização que os escravos receberam, que a libertação de uma sempre moça que libertou os escravos, pediu ao pai que queria libertar os escravos. O rei não podia voltar a palavra atrás e foi onde foram libertados os escravos.” Concluindo, o capitão Fernando declara: “A congada foi a única indenização que os escravos receberam após a abolição da escravatura.”

Lilian Sagio Cezar é pesquisadora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.

CEZAR, Lilian Sagio. A santa, o mar e o navio: congada e memórias da escravidão no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 58, n. 1, p. 363-396, jan./jun. 2015. ISSN: 1678-9857. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/102111>. Acesso em: 18 ago. 2015.

Margareth Artur / Portal de Revistas da USP


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