Brasil é exemplo de inovação em controle democrático não eleitoral

País tem experiência única no mundo de criação de instituições participativas mistas, mostra pesquisa do CEM publicada em livro

 11/06/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 05/09/2019 as 10:58
Protestos são considerados entre os tipos de controle democrático não eleitoral extrainstitucional- Foto: George Campos/USP Imagens

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A democracia do Brasil se distingue no cenário internacional por contar com um modelo diferenciado de instituições de controle democrático não eleitorais. Trata-se de instituições que fazem parte do arcabouço de funcionamento do Estado, mas que contam com representação de atores da sociedade civil. O país tem um conjunto amplo de instituições participativas cujo modelo é misto: são institucionalizadas no corpo do Estado, mas sua operação e vitalidade dependem da participação e engajamento de atores da sociedade civil. O exemplo mais notável são os conselhos gestores de políticas, mas conferências nacionais, comitês e corpos colegiados vários fazem parte desse conjunto. Trata-se de modelo inovador de participação quando se observa o contexto mundial.

Essa distinção do Brasil é apontada por Adrian Gurza Lavalle, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEM-Cepid) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Lavalle e o pesquisador do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores em Antropología Social (CIESAS) do México, Ernesto Isunza Vera, são organizadores do recém-lançado livro Controles Democráticos no electoraes y regímenes de Rendición de Cuentas em el Sur Global, publicado pela editora Peter Lang.

Imagem: Divulgação / CEM

“A peculiaridade no Brasil é que as experiências de controle sociais mais relevantes são as mistas. Isso não existe nos outros países estudados”, aponta Lavalle, que também é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Aqui, elas se destacam também por duas características adicionais. Primeiro, por atuarem de forma federalizada: as experiências mais importantes têm capilaridade social e correm ao longo da estrutura federativa, indo dos municípios até o nível nacional e vice-versa. Segundo, a participação é voltada para as políticas públicas, permitindo a incidência de atores por ela afetados na fiscalização, gestão e até no desenho das mesmas.

“Temos uma das experiências mais reconhecidas no mundo em termos de diversidade e de construção de mecanismos de participação, somos considerados como um laboratório de dimensões continentais”, acrescenta. Justamente essas instituições estão sob ameaça de extinção depois da publicação do decreto 9.759/2019, que elimina os conselhos, comitês, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns e outros colegiados que não tenham disso criados por lei. Esse decreto revogou o 8.243/2014, que instituiu a Política Nacional (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), que objetivou, sem sucesso, fomentar a integração e incrementar o grau de institucionalização das instituições participativas.

O que são e quais são as formas de controles democráticos não eleitorais

O livro é resultado de um projeto de pesquisa feito com financiamento da Fundação Hewlett, em parceria entre o CEM e o CIESAS, que desempenhou papel relevante na construção da grade conceitual, no desenho do projeto e na pesquisa realizada no Brasil. No projeto, pesquisadores do México, Colômbia, Brasil, China e África do Sul analisam as experiências de cada local no que se refere às experiências de controles democráticos não eleitorais mais relevantes em cada pais, avaliadas pela sua capacidade forçar a accountability ou prestação de contas dos respectivos governos.

A pesquisa que resultou no livro trata das formas de controle democráticos não eleitorais (CDNE) que podem incidir sobre o Executivo, Legislativo e Judiciário. A obra traz um compilado das experiências mais relevantes, situadas dentro do contexto de cada país estudado, e busca caracterizar regimes de controle, de modo a produzir diagnósticos integrados, para além de instituições participativas específicas.

Além dos controles extrainstitucionais mistos (CDNE-IM), que são destaque na democracia brasileira, há os controles puramente institucionais (CDNE-I), também conhecidos como horizontais ou legais, como a Advocacia Geral da União, a Defensoria e o Ministério Públicos no Brasil. Eles operam independentemente da presença dos atores da sociedade civil, e têm funções permanentes, fazendo um controle horizontal, burocrático ou legal do Estado.

Existem também os controles democráticos não eleitorais extrainstitucionais (CDNE-EI), cujo exemplo mais típico são os protestos, mas inclui redes, fóruns da sociedade civil, desobediência civil. Operam com lógicas de mobilização, não raro contenciosas, e mediante persuasão da opinião pública, por meio dos meios de comunicação.

China: controle democrático numa não-democracia

Um dos pressupostos básicos da teoria democrática é que controles sociais democráticos estão restritos a regimes democráticos. “Certamente, regimes autoritários não descansam em eleições, mas disso não deriva a inexistência de formas de controles da população sobre as burocracias e agentes políticos”, explica. A pesquisa e o livro desmontam esse pressuposto com a apresentação do caso chinês. Segundo Gurza Lavalle, os regimes não democráticos também lidam com problemas de coordenação, de legitimidade e de controle das burocracias.

Na China, existem redes informais de controle sobre a política formadas pela população. Um exemplo é o xifang – cartas ou visitas. É geralmente o primeiro mecanismo de contato formal do governo local quando há críticas dos cidadãos em relação às políticas ou aos funcionários. Ao mesmo tempo, serve como ferramenta para que o governo central tenha informações sobre o que ocorre nos níveis mais locais de governo.

Com o fim do apartheid, a África do Sul passou por um processo de transição semelhante ao da América Latina na queda das ditaduras militares: intensa mobilização social, repactuação do Estado e nova Constituição apostando na participação e inclusão social. Mas as instituições criadas pela constituição foram progressivamente controladas pelo partido do Congresso Nacional Africano, que assumiu feições de partido de Estado, aproximando-se curiosamente do caso mexicano.

“No México havia partidos tolerados de oposição, mas por mais de sete décadas o Partido da Revolução Institucionalizada (PRI) se manteve no poder como partido de Estado emergido da revolução de 1910, estabelecendo aqui certo paralelismo com a África do Sul”, conta. No México, os CDNEs exercem papel mais consultivo e operam basicamente no nível federal, são compostos por notáveis, convidados por titulares de secretarias e ministérios, muito concentrados no Poder Executivo e com pouca capilaridade social.

A Colômbia saiu, com enorme trabalho, de um processo profundo de esgarçamento social causado pelo histórico de guerra intestina e do peso da guerrilha e do narcotráfico na disputa pelo poder. “Lá, trata-se inicialmente daquilo que denominam ‘oferta participativa’. A elite política percebeu que reincorporar a cidadania ao jogo democrática era um desafio. Para produzir legitimidade era preciso criar novas instituições capazes de trazer o cidadão de volta para a política, então, se tratou inicialmente menos de uma demanda social de mobilização e mais de uma estratégia da classe política que precisou ser revista devido à indiferença da cidadania”, aponta.

Origem dos regimes

A pesquisa procurou responder se era possível caracterizar a diversidade de controles democráticos não eleitorais como regimes de controle com feições distintivas em cada país. Um dos fatores explicativos comuns dessas feições reside na forma como se produziu a transição e como essas instituições se inserem ou não na configuração de um sistema competitivo de disputa pelo poder no sistema partidário. “Isso faz uma diferença enorme”.

“No contexto da transição no Brasil, todos os partidos, tirando o Arena, tinham compromisso com a participação social”, lembra. A ditadura militar brasileira não “congelou” os partidos existentes antes de 1964. Aqui, continuamos a realizar eleições municipais e novos partidos foram se construindo no processo de transição do regime militar para a democracia.

A ditadura militar promoveu a desorganização do sistema político, em vez de “congelar” os partidos existentes antes do golpe. Diferentemente do que ocorreu em países como Argentina ou Chile, por exemplo. O Brasil emerge da transição com novos partidos e sem fidelidades partidárias cristalizadas. Assim, os novos partidos não tinham eleitores cativos, e, para conquistá-los, usaram como uma de suas bandeiras o compromisso com a inclusão e participação cidadã.

“O PMDB, o PSDB, o PT e os partidos mais à esquerda do espectro político apostaram no ideário participativo. Depois, esse ideário vai progressivamente sendo associado ao PT e seu crescimento no plano municipal, e acaba por se tornar ora uma questão fora da agenda das forças de centro e centro direita, ora, mais recentemente, um alvo de ataques mais à direita”, recorda.

“O livro mostra o quão inovador é o Brasil em relação a outros de países, e examina os conselhos como a experiência que melhor condensa as características da inovação democrática quando se fala dos dispositivos de controle não eleitorais”, assinala.

Pela análise inicial do grupo de pesquisa de Gurza Lavalle no CEM, mais de 50 conselhos devem ser extintos. “Não há um diagnóstico do governo sobre as instâncias participativas que está eliminando”, comenta. “O Estado brasileiro desenvolveu políticas para as comunidades indígenas, de atenção ao idoso, de reconhecimento e proteção da população LGBT, das populações tradicionais, dentre outras, com a presença de atores desses grupos nos conselhos, ajudando a entender suas necessidades e qual a melhor forma de construir políticas para eles. Extinguir os conselhos é uma decisão infeliz e atabalhoada, com consequências negativas para as capacidades estatais que não estão sendo antevistas pelo governo neste momento”, finaliza.

Sobre o CEM

Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na USP e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.

Da Assessoria de Comunicação do CEM


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