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Identificada proteína que ativa efeito de antidepressivos no sistema nervoso
Pesquisa revelou que a proteína p75NTR funciona como receptor dos antidepressivos cetamina e fluoxetina, que reorganizam as conexões entre células nervosas e mudam comportamentos em animais
No corpo humano, há uma classe de proteínas, os receptores, que atuam para estabelecer a comunicação entre as células, inclusive no sistema nervoso, razão pela qual os cientistas estudam sua influência no efeito de fármacos antidepressivos. Um estudo com participação de pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP revelou, por meio de testes de laboratório e com animais, que o receptor p75NTR está envolvido na ação de dois antidepressivos nas células nervosas, a cetamina e a fluoxetina, reorganizando as conexões e levando a mudanças de comportamento.
A pesquisa é descrita em em artigo publicado na revista científica Biological Psychiatry, apontando que a ação mútua dos antidepressivos e do receptor p75NTR promove e regula a neuroplasticidade cerebral, além de impulsionar os efeitos terapêuticos dos medicamentos.
A fluoxetina é um inibidor seletivo da recaptação de serotonina, neurotransmissor que regula ansiedade, apetite, humor, libido, ritmo cardíaco, sono e temperatura corporal. Já a cetamina é um anestésico dissociativo que, ao contrário dos antidepressivos convencionais, apresenta um efeito antidepressivo rápido e sustentado. “Essa característica lhe proporciona um valor terapêutico imprescindível para o tratamento de casos em que há risco iminente de suicídio ou no qual os pacientes não respondem a outros tratamentos”, afirma ao Jornal da USP o pesquisador Cassiano Diniz, pós-doutorando da FMRP, autor principal do artigo. “Outros compostos, como a imipramina e a hidroxinorcetamina, o provável metabólito ativo da cetamina que seria o responsável pelos seus efeitos antidepressivos, foram usados nas etapas iniciais do trabalho, onde demonstramos que diferentes classes farmacológicas de drogas com propriedades antidepressivas se ligam ao p75NTR.”
“As neurotrofinas, proteínas que atuam como importantes agentes do sistema nervoso central para regular a comunicação entre os neurônios, reconhecem e se ligam a determinados receptores”, observa Diniz. “Porém, há duas versões dessas neurotrofinas, uma madura que atua principalmente sobre o receptor TRKB, e de maneira geral reforça as conexões entre os neurônios, e outra imatura, que atua principalmente sobre o p75NTR e pode tanto auxiliar a ação do TRKB quanto contrapor os seus efeitos, por exemplo, reduzindo a comunicação entre os neurônios.”
O pesquisador relata que propôs em um artigo de revisão publicado em 2018 em que o receptor p75NTR poderia ser um alvo desconhecido para a ação dos antidepressivos. “Desde então, temos trabalhado com diferentes técnicas de laboratório e com animais de experimentação para verificar se diferentes classes de fármacos poderiam, de fato, ter como alvo de ação este receptor”, aponta.
“Com os trabalhos publicados em 2021 na [revista] Cell e em 2023 na Nature Neuroscience, nós demonstramos que tanto os antidepressivos quanto os psicodélicos com potencial efeito antidepressivo se ligam diretamente aos receptores TRKB e os fazem responderem de maneira mais eficiente às neurotrofinas maduras”
“Agora nós demonstramos que os antidepressivos também reconhecem, se ligam e ativam o p75NTR. Não fomos a fundo nesse aspecto, mas provavelmente também facilitando a ação da neurotrofina, nesse caso imatura, para sua ativação”, destaca Diniz. “Nós demonstramos, com técnicas simples de ligação, que diferentes classes de antidepressivos se ligam ao p75NTR. Confirmamos, com outra técnica bastante robusta, de ressonância magnética nuclear, que a fluoxetina de fato interage diretamente com esse receptor”.
Remodelando neurônios
Segundo o pesquisador, com o emprego de outras técnicas in vitro em laboratório o estudo demonstrou que a fluoxetina e a cetamina não só se ligam ao p75NTR, mas são capazes de ativar a mesma cascata de sinalização celular que envolve a ação das neurotrofinas imaturas. “Usando camundongos mutantes e um modelo de neuroplasticidade do córtex visual do cérebro que explora a dominância ocular sensorial [tendência preferencial da entrada visual entre um olho e outro], observamos que a ação dos fármacos de permitir o remodelamento neuronal, a plasticidade sináptica [das conexões entre neurônios] não ocorre nos animais sem o p75NTR”, destaca.
“Com base em ferramentas farmacológicas, demonstramos também que esse receptor é importante para conduzir os efeitos dos antidepressivos sobre o comportamento de ratos e camundongos. Por exemplo, os antidepressivos reforçaram a memória de extinção de roedores no modelo comportamental do medo condicionado, efeito este que é análogo aos efeitos da terapia cognitivo-comportamental focada no trauma, onde pacientes com transtorno de estresse pós-traumático ou fobias tendem a aprender a lidar com seus medos e ansiedades”, relata Diniz. “No caso dos animais, os antidepressivos ajudaram a reaprenderem que um determinado estímulo não era mais aversivo.”
O pesquisador acrescenta que quando foram bloqueadas todas as possibilidades de ação dos antidepressivos sobre o p75NTR, em uma determinada região do sistema nervoso central que é importante para a regulação deste tipo de comportamento, não foi mais observado o efeito esperado dessas drogas. “Com o uso de ferramentas mais sofisticadas, observamos também que a ação dos fármacos sobre padrões eletrofisiológicos de determinadas regiões cerebrais envolvidas com a capacidade de estabelecer uma memória de extinção dependem da disponibilidade desse receptor.”
Cérebro dinâmico
“O nosso cérebro é muito mais dinâmico do que imaginávamos anos atrás e o trabalho propõe que os antidepressivos tornam essa dinâmica mais eficiente, não só aumentando as conexões sinápticas, mas possivelmente também destruindo conexões que não são importantes ou que estariam até mesmo prejudicando a pessoa a lidar com eventos estressantes”, afirma o pesquisador. “Isso nos levou a propor, junto com os resultados dos nossos experimentos, que a ação dos antidepressivos é dinâmica, atuando para ‘construir’ ou ‘desconstruir’ as conexões neuronais ao passo que dependem da atividade local dos neurônios.”
De acordo com o pesquisador, a busca por novos alvos terapêuticos, baseados no desenho racional de medicamentos, poderia se beneficiar ao considerar esse novo mecanismo de ação que até então era completamente desconhecido. “Nossos dados confirmam, mais do que nunca, que tais drogas antidepressivas devem ser tomadas com muito cuidado, com o acompanhamento de um psiquiatra e sob um regime de tratamento psicológico contínuo”, ressalta. “Portanto, os antidepressivos nada mais fariam do que facilitar o refinamento e o remodelamento das conexões sinápticas que seriam importantes para o efeito antidepressivo. Tais sinapses em necessidade de mudança somente viriam à tona com o tratamento psicológico adequado, sem o qual a ação dos antidepressivos poderia ser completamente inútil ou até mesmo perigosa.”
A pesquisa, liderada por Diniz e pelo professor Leonardo Resstel, do Departamento de Farmacologia da FMRP, com participação da doutoranda Anna Bárbara Borges-Assis, teve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que permitiu a realização de parte do estudo na Universidade de Helsinki, na Finlândia, supervisionado pelo professor Eero Castrén. Na FMRP colaboraram os doutorandos Danilo Benette Marques, Leonardo Rakauskas Zacharias e a pós-doutoranda Ana Paula Crestani, orientados pelo professor João Pereira Leite, do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, e na Universidade de Helsinque, participaram os pós-doutorandos Plínio Casarotto e Caroline Biojone, egressos do doutorado da FMRP. Também fizeram parte do trabalho pesquisadores do Instituto de Química Bioorgânica da Academia Russa de Ciências, Universidade Estatal de Moscou e Instituto de Moscou de Física e Tecnologia.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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