Crustáceos paulistas ganham espaço em banco mundial de DNAs

Pesquisa leva DNAs de crustáceos paulistas ao banco genético mundial de seres vivos, o GenBank, com sede nos EUA

 08/01/2018 - Publicado há 6 anos
Estima-se que no mundo existam em torno de 17 mil espécies de crustáceos decápodes, somente 20 a 30% delas mapeadas geneticamente. No Brasil, diversidade pode estar próxima de 600 espécies. Na imagem, o Typton fapespae sp. nov– Foto: arquivo pessoal/Fernando Mantelatto

.
Brasil dá importante passo para a preservação de seus camarões, lagostas e caranguejos. Dentre as cerca de 600 espécies de crustáceos decápodes existentes no litoral brasileiro, mais de 1/3 delas (221) acaba de ter as sequências de seus DNAs incluídas em banco genético mundial de seres vivos (GenBank) com sede nos Estados Unidos.

Essas espécies foram coletadas ao longo do litoral do Estado de São Paulo durante a realização do projeto temático Biota Fapesp, desenvolvido entre 2011 e 2016, e coordenado pelo professor Fernando Luis Mantelatto, do Laboratório de Bioecologia e Sistemática de Crustáceos (LBSC), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.

O estudo deu origem ao artigo Biblioteca de DNA como ferramenta para identificar crustáceos de decápodes no litoral de São Paulo (DNA library as a tool to identify decapod crustaceans on the São Paulo coastline), publicado na versão on-line na revista norte americana Journal Mitochondrial DNA em setembro último.

.
“Mix em abundância” de espécies no litoral paulista

A escolha do litoral paulista não foi por acaso. Por conta do regime de correntes marítimas, São Paulo abriga uma diversidade peculiar dessa fauna de crustáceos, com espécies de águas tipicamente frias, principalmente da Argentina, quanto de águas mais quentes oriundas do Equador e do Caribe. Mantelatto conta que o litoral paulista “funciona como uma área de transição faunística, com uma diversidade muito grande de espécies”.

Análise detalhada buscou distiguir espécies muitos similares, que suscitam dúvidas sobre a existência de duas ou mais espécies, quando na verdade trata-se de uma única, com variação de cor e forma – Foto: Arquivo pessoal/Fernando Mantelatto

.
Para a identificação das espécies existentes, os pesquisadores utilizaram o DNA de código de barras,
DNA Barcode, juntamente com a análise morfológica (aparência, forma externa), complementadas com informações sobre a biologia, ecologia e aspectos reprodutivos. Tal conduta, constitui-se em uma técnica integrativa para análise precisa da diversidade, especialmente quando se depara com espécies muitos similares, que “suscitam dúvidas sobre a existência de duas ou mais espécies, quando na verdade trata-se de uma única, com variação de cor e forma”, conta o professor, adiantando que nesta etapa foram utilizados dois marcadores genéticos para serem confrontados com os dados do banco mundial, dando assim maior confiabilidade, pois normalmente “os estudos utilizam somente um marcador”.

As coletas ocorreram em todo o litoral paulista por meio de expedições de uma semana a dez dias, com mais de 10 participantes, buscando pela maior diversidade. Visitaram todos os ambientes ligados ao litoral, desde rios e riachos até manguezais, costões rochosos e mar costeiro, além de profundidades de até 150 metros, usando navios oceanográficos do Ibama.

Expedições visitaram desde rios e riachos até manguezais, costões rochosos e mar costeiro, além de profundidades de até 150 metros, usando navios oceanográficos do Ibama – Foto: Arquivo pessoal/Fernando Mantelatto

.
Com essa análise, considerada mais precisa e informativa, os pesquisadores garantem que chegaram a uma nova perspectiva sobre a biodiversidade dessa fauna paulista, com informações de aspectos ecológicos, preservação e taxonomia. Ao confrontar as informações sobre espécies coletadas e identificadas com o número de espécies que supostamente existia no litoral paulista, os pesquisadores perceberam muitos erros de identificação na projeção anterior. Mantelatto acredita que esses erros aconteceram pela falta de acuracidade na caracterização de algumas espécies ou limitação pela técnica utilizada, já que só a observação morfológica não é suficiente em muitos casos. Assim, os resultados deste estudo servirão “como balizadores para nortear futuros trabalhos e pesquisas para os laboratórios que trabalham com crustáceos e outros organismos marinhos”, comemora o professor.

A comunidade científica estima que no mundo existam em torno de 17 mil espécies de crustáceos decápodes, sendo que somente 20 a 30% estão mapeadas geneticamente. No Brasil, suspeita-se que a diversidade esteja próxima de 600 espécies. Em São Paulo a única projeção feita em 1999 era de 330 mas, com a precisão na identificação dessas espécies, conseguida no trabalho coordenado por Mantelatto, a conclusão é de que o estado de São Paulo tenha pelo menos 404 desses crustáceos decápodes, sendo que 70% deles já estão mapeados geneticamente. Quanto ao aumento do número de espécies, os pesquisadores acreditam que possa ser maior em função de novos desdobramentos que visam aprofundar coletas em áreas pouco amostradas/exploradas (principalmente no mar profundo) e ainda na análise de espécies que formam complexos com mais de uma entidade taxonômica.

O mapeamento desses crustáceos oferece recursos importantes. Garante Mantelatto que, “se uma espécie for extinta, por exemplo, teremos seu registro e documento do ponto de vista genético”. Este registro genético, além de estar depositado no GenBank, todos as espécies sequenciadas têm depósito em uma coleção de referência nacional/mundial, reconhecida pelos órgãos competentes.  Em particular, neste projeto, a Coleção de Crustáceos do Departamento de Biologia (CCDB) da FFCLRP e do Museu de Zoologia (MZ), ambas da USP. Isto significa que no futuro, se alguém quiser comparar essa espécie com outras, seu DNA e o exemplar estarão disponíveis sob um registro formal e oficial da espécie”.

Com esse trabalho, os brasileiros começaram a colaborar com a iniciativa norte-americana de uma biblioteca genômica de todas as espécies vivas do mundo, projeto este recém divulgado em outubro passado em reunião na Fapesp. “É algo bastante arrojado e envolverá a participação de vários pesquisadores. Nossa parcela de contribuição será com os crustáceos decápodes”.

.
Estudo pioneiro cria protocolo para identificação de espécies

Esses estudos são pioneiros para a fauna brasileira. “Infelizmente não temos estudos similares no País utilizando este protocolo e que permita comparar a diversidade em termos numéricos, e com este grau de eficiência”, afirma Mantelatto. Comenta ainda que os valores obtidos no projeto do litoral paulista estão muito próximos ao que foi encontrado em dois projetos internacionais em termos percentuais. “A eficiência da identificação, o número de espécies que conseguiram ser identificadas e coletadas e a margem de erro encontrados por eles também foram encontradas aqui, o que mostra que os marcadores genéticos são bastante informativos para este tipo de objetivo, mas, principalmente, que o trabalho desenvolvido em São Paulo teve uma acuracidade muito similar a que foi alcançada com projetos europeus, resguardadas as devidas dimensões”.

Foto: Arquivo pessoal/Fernando Mantelatto

O pesquisador comemora também a criação de um protocolo para identificação de espécies que pode ser utilizado em outras regiões do Brasil e do mundo, e que servirá de guia para futuros mapeamentos da diversidade com esta ferramenta. O fluxograma de procedimentos proposto “dá confiabilidade na identificação das espécies”. O professor comenta que uma nova sequência, ao ser comparada com as do banco genômico, pode obter 100% de confiabilidade genética com o perfil de parentesco com espécies já catalogadas anteriormente. Na sequência, rastreia-se para saber o grau de similaridade. Não havendo compatibilidade, pode tratar-se de uma nova espécie. O fluxograma também permite corrigir possíveis erros em identificações anteriores, o que nunca foi feito. A ambição do grupo agora é que esse protocolo seja utilizado para identificar e qualificar todas as espécies da costa brasileira, o que deverá ser a próxima etapa de um novo projeto temático em análise pela FAPESP.

Nem sempre a descrição morfológica é suficiente para identificar uma espécie. A novidade do protocolo é juntá-la à verificação genômica, usando a essência do DNA, que é comparado a um código de barras. No futuro, “se fizermos uma ‘sopa’ de todos os animais e de diversos lugares, conseguiremos saber exatamente que animais estarão nessa mistura e qual a sua origem”.

E a ambição de Mantelatto vai além. Essas informações precisas sobre que espécies estão sendo consumidas podem se tornar uma realidade em benefício do consumidor, pois poderão estar certificadas e disponíveis nas gôndolas dos supermercados ou nos cardápios dos restaurantes do futuro. Com elas, o cliente saberá o que está adquirindo ou consumindo.

.
Conhecimento marinho na educação, economia e ecologia

O banco de dados de sequência de DNA, como ferramenta para identificar crustáceos decápodes no litoral de São Paulo, é parte do Projeto Temático Biota Crustáceos decápodes: multidisciplinaridade na caracterização da biodiversidade marinha do Estado de São Paulo.

Grupo de pesquisadores do projeto temático Biota Fapesp – Foto: Arquivo pessoal/Fernando Mantelatto

.
De 2011 a 2016, três centros de pesquisa do Estado de São Paulo se uniram para a empreitada financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A equipe do professor Mantelatto, da FFCLRP, trabalhou em conjunto com os dos professores Fernando Zara, da Unesp de Jaboticabal, Rogério Costa, da Unesp Bauru e Antonio Castilho, da Unesp de Botucatu, cada qual em um dos três subprojetos, resultado da divisão do principal.

O grande projeto envolveu cerca de 74 bolsas de estudos (iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado), financiadas pela Fapesp, Capes e CNPq; a publicação de mais de 170 artigos, teses, dissertações e mais de 200 apresentações em congressos e ainda a publicação de vários capítulos no livro vermelho das espécies de crustáceos no Brasil em 2016, com estudos de espécies em risco. Em breve, o grupo já terá novos avanços, como a publicação de catálogo de espécies dos crustáceos decápodes do Estado de São Paulo (chamados do checklist), divididos em grupos afins, como camarões, caranguejos, ermitões e lagostas.

Como parte desta contribuição, cinco novas espécies de decápodes para a ciência também foram descritas, sendo que uma delas recebeu o nome de Typton fapespae, camarão minúsculo que vive junto com as esponjas e que levou o nome em homenagem a agência financiadora do Estado de São Paulo.

Verificaram ainda que algumas espécies comerciais, a maioria destas são camarões ou caranguejos usados na culinária, trocam fluxo gênico ao longo de sua área de distribuição. “Isso significa que as populações estão interagindo e se intercomunicando, o que significa que se houver um desastre ambiental na região de São Sebastião, com a dizimação dos caranguejos, por exemplo, é viável repovoar com caranguejos de outras regiões cujas populações compartilham haplótipos, minimizando impactos para essa espécie e para a região.”

Mantelatto lembra também das contribuições para a política ambiental. O Brasil possui lei de proibição de pesca para determinados períodos do ano, e que muitas destas sanções valem para toda a costa brasileira, que é muito grande. De acordo com os achados, esta conduta precisa ser mudada, pois a reprodução das populações tem suas particularidades e ciclos dependendo da região, como por exemplo, o que acontece no nordeste pode não ocorrer no mesmo período em São Paulo ou em Santa Catarina, por exemplo. Os pesquisadores propõem ajustes nestes períodos de interrupção da pesca, que estejam em sinergia com os locais onde esses animais vivem.

A equipe espera ainda conseguir realizar um trabalho de educação junto às comunidades de pescadores sobre os riscos de extinção de algumas espécies. “A análise genética ajuda também na observação da peculiaridade de uma espécie em uma determinada área, o que pode significar que ela é muito especial, e que se for dizimada nunca mais vai se recompor.

Mais informações: e-mail fmantel@usp.br

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.