Ativação da respiração celular depende de concentração ideal de cálcio, mostra estudo

Pesquisadoras do Instituto de Química (IQ) da USP investigaram como determinadas concentrações de cálcio alteram o fluxo metabólico

 27/02/2023 - Publicado há 1 ano
Aumento dos níveis de cálcio em mitocôndrias de hepatócitos: à esquerda na condição controle, no centro logo após adição de tapsigargina (TG), droga que aumenta o cálcio, e à direita no tempo final – Foto: Eloisa Vilas Boas/IQ-USP

 

Agência Fapesp

O cálcio é o mineral mais abundante no corpo humano e tem diversas funções biológicas, participando de processos bioquímicos importantes. Ele é um regulador-chave em várias vias de sinalização intracelular e tem sido implicado no controle metabólico e na função mitocondrial. Sob a forma de íons de cálcio (Ca2+), ele ativa a respiração mitocondrial ao induzir a atividade de enzimas associadas ao metabolismo oxidativo, regulando assim a geração de adenosina trifosfato (ATP). O ATP é a principal fonte de energia de nossas células. A questão é que, embora conhecida, essa atividade do cálcio na respiração celular não havia sido determinada quantitativamente, ou seja, ninguém ainda havia medido.

Esse foi o desafio da pesquisadora Eloisa Aparecida Vilas Boas em seu projeto de pós-doutorado desenvolvido com bolsa da Fapesp e supervisão da professora Alicia Kowaltowski, do Instituto de Química (IQ) da USP. A investigação foi conduzida no âmbito do Centro de Pesquisa em Processos Redox em Biomedicina (Redoxoma), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da Fapesp.

“Fala-se muito que o cálcio ativa algumas enzimas mitocondriais do ciclo de Krebs [uma etapa da respiração celular que ocorre na mitocôndria], com impacto na produção de ATP. Mas será mesmo? Ninguém mediu. Então o que fizemos foi estudar a respiração em mitocôndrias isoladas do fígado de camundongos e em hepatócitos em cultura, modulando diferentes níveis de cálcio. E mostramos que existe uma faixa ideal de concentração de cálcio em que a respiração mitocondrial é ativada”, afirma Vilas Boas. Os resultados foram publicados no Journal of Biological Chemistry (JBC).

Professora Alicia Kowaltowski – Foto: Divulgação / IFSC

Kowaltowski destaca que o trabalho inovou ao investigar como determinadas concentrações de cálcio alteram o fluxo metabólico. “Se você olha para a quantidade de uma coisa, tem uma fotografia do momento, não sabe quanto está sendo consumido e quanto está sendo produzido. Neste trabalho, a Eloisa está olhando para o fluxo, quanto está sendo transformado dessas moléculas. Isso realmente mostra como está a atividade metabólica.”

Além disso, a pesquisa avaliou a respiração celular em níveis fisiológicos de cálcio, para entender como é regulado o metabolismo de uma célula normal. “Muitas vezes a gente procura por doenças, mas tem lacunas no conhecimento do que acontece numa célula absolutamente normal”, afirmou Kowaltowski.

Cachinhos Dourados

O cálcio afeta quase todos os aspectos da vida celular e suas concentrações intracelulares são rigorosamente controladas. Nas células, a maior parte do cálcio está sequestrada no retículo endoplasmático e nas mitocôndrias – estas são consideradas reguladores centrais da homeostase do cálcio, pois podem captar, absorver e liberar íons do mineral.

Segundo as pesquisadoras, sabe-se que, nas mitocôndrias, a concentração excessiva de cálcio leva a um processo chamado transição da permeabilidade mitocondrial, no qual a membrana mitocondrial perde a seletividade, comprometendo a síntese de ATP e levando a célula à morte. Níveis moderados de cálcio, por outro lado, podem ativar direta ou indiretamente as enzimas da matriz mitocondrial, possivelmente impactando a produção de ATP.

Para entender de maneira mais global os efeitos do cálcio na respiração mitocondrial, elas monitoraram o efeito de diferentes concentrações de cálcio na taxa de consumo de oxigênio, fazendo um paralelo entre mitocôndrias isoladas de células do fígado de camundongos (hepatócitos) em cultura. O fígado é um dos tecidos mais importantes para o metabolismo.

Eloisa Aparecida Vilas Boas – Foto: Arquivo pessoal

Vilas Boas explica que, para estudar as mitocôndrias isoladas, foram usados vários substratos e diferentes concentrações de cálcio. A análise foi feita com um equipamento chamado Oroboros, um respirômetro de alta resolução que permite medir o consumo de oxigênio nas mitocôndrias de acordo com o tempo. Nas células intactas, foram usados moduladores – tanto um quelante para tirar o cálcio intracelular, levando à diminuição da respiração, quanto estratégias para aumentar a concentração de cálcio. As células intactas foram estudadas com o uso do analisador Seahorse, que permite medir a taxa de consumo de oxigênio de células vivas em condições de cultura.

Os resultados indicam que as concentrações de cálcio impactam fortemente a respiração mitocondrial, com um efeito do tipo “Cachinhos Dourados”, ou seja, se houver falta ou excesso de cálcio a fosforilação oxidativa é limitada. Já a concentração “na medida certa” promove ativação significativa.

Em todas as situações, os níveis de cálcio foram quantificados. “Além da medida do cálcio citosólico [presente no citosol, conteúdo celular que preenche o citoplasma entre as organelas, o núcleo e a membrana plasmática], fiz um experimento que mostrou o cálcio dentro da mitocôndria. Com isso demonstrei que realmente ele precisa entrar na mitocôndria para provocar o efeito”, afirmou a pesquisadora.

Segundo Kowaltowski, o interessante foi observar que a célula mantém os níveis de cálcio mitocondrial em uma faixa ideal para a respiração. “A célula normalmente não se mantém no máximo de produção de ATP. Ela pode aumentar essa produção de acordo com a demanda e mantém os níveis de cálcio necessários para isso.”

O artigo Goldilocks calcium concentrations and the regulation of oxidative phosphorylation: Too much, too little, or just right pode ser acessado em: www.jbc.org/article/S0021-9258(23)00036-4/fulltext.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

* Com informações do Redoxoma, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fapesp


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