Artigo escrito por pesquisadores da USP e do Queen Mary College da University of London (Reino Unido) adverte que há um grande risco do surto de monkeypox (também conhecida como varíola dos macacos) não ser contido adequadamente no Brasil caso se repitam erros semelhantes cometidos na resposta à covid-19. Ao analisar as medidas tomadas pelos governos contra o coronavírus, principalmente na esfera federal, o artigo aponta cinco perigos que devem ser contornados no combate à doença: o estigma associado à infecção, as deficiências do sistema de saúde, a dependência de vacinas e tratamentos estrangeiros e a crise de governança em que se desenrola a luta contra a epidemia. Os pesquisadores esperam poder dialogar com o novo governo para melhorar a resposta à covid e à monkeypox. O artigo foi publicado na revista científica The Lancet Regional Health Americas no último dia 10 de novembro.
“Alertamos para a situação da monkeypox no Brasil pois, embora os dados indiquem que o surto teve uma desaceleração quanto ao pico da circulação viral (como ocorreu em outros países) entre agosto e setembro, mesmo assim o Brasil tem hoje mais de 9.500 casos confirmados e um total de 11 mortes, sendo o país com mais mortes pela doença no mundo”, afirma ao Jornal da USP o professor Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), primeiro autor do artigo. “Conforme observado ao longo da história em outras epidemias e doenças transmissíveis no Brasil, entre elas o HIV, tuberculose, sífilis e, mais recentemente, a covid-19, caso medidas não sejam adotadas para o controle mais eficaz, há chance da dispersão do monkeypox no imenso território brasileiro e entre grupos mais vulneráveis, que tenderão a ser desproporcionalmente mais atingidos.”
“O texto destaca as omissões e erros cometidos pelo governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia de covid e alerta para medidas necessárias visando ao controle mais eficaz da propagação da monkeypox no Brasil”, diz a professora Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que participou da elaboração do artigo. “Procuramos chamar a atenção de que não é só uma questão técnica, existem questões mais complexas, inter-relacionadas, que ajudam a entender por que houve uma falha muito importante na pandemia, e como isso ajuda também a entender as falhas que podem acontecer no enfrentamento da monkeypox.”
Sobre a covid-19, Lorena Barberia observa que as informações disponíveis já alertavam para o problema de uma infecção respiratória grave causada pelo vírus em janeiro de 2020. “No início, não se compreendia como o vírus era transmitido pelo ar, a necessidade de usar máscaras, distanciamento e isolamento dos casos, e, nos primeiros meses, houve uma ênfase em detecção de casos suspeitos entre viajantes e não em pessoas com sintomas respiratórios graves que eram hospitalizadas”, relata. “Hoje entendemos que está acontecendo o mesmo com a monkeypox. Nós temos uma capacidade muito grande de evitar a transmissão fazendo rastreamento de contágios e testagem mais aprofundada desses casos, esse sistema de vigilância teria sido muito importante se tivesse sido implantado durante a covid-19. Essa falta de controle contribuiu para o Brasil ser o segundo país do mundo com mais mortes pela doença.”
Mário Scheffer destaca que a situação da monkeypox é “especialmente preocupante” pela péssima resposta recente do Brasil e pelos erros cometidos em relação à covid (e que não podem ser repetidos). “Também preocupa que ocorreram cortes no orçamento do Ministério da Saúde para 2023, e os recursos não serão suficientes nem mesmo para cobrir as ações de tratamento e prevenção de HIV, tuberculose, hepatite e hanseníase”, ressalta. “Assim, apresentamos no artigo cinco fatores críticos que estão interligados, e que deveriam ser considerados em um novo plano de combate à doença.”
Fake news
De acordo com o professor da FMUSP, a monkeypox chama a atenção para dois temas que precisam compor as campanhas e medidas de saúde pública. “Primeiro, evitar o estigma associado a uma infecção que afeta desproporcionalmente populações mais vulneráveis”, enfatiza, “e segundo, o papel das fake news, mensagens enganosas ou imprecisas que dificultam a prevenção. Não só a monkeypox, mas ações de combate a epidemias precisam hoje considerar um plano específico de combate à desinformação”.
Lorena Barberia lembra que na pandemia existia a percepção de que certos grupos, como as pessoas idosas, eram mais vulneráveis à covid-19 e apenas eles precisavam ser isolados, deixando de lado medidas de proteção que envolvessem o conjunto da sociedade, como o uso de máscaras e o pagamento de auxílios. “A desinformação também foi um problema muito grande, desde as falas de que era ‘só uma gripe’, as falas sobre como se transmitia, havia muita confusão. Dizia-se que usar álcool em gel era suficiente, não se considerando a transmissão pelo ar”, comenta a professora da FFLCH. “Com a monkeypox, estamos verificando a mesma situação de desinformação, inclusive entre lideranças públicas. Mencionamos no artigo o governo Jair Bolsonaro e o próprio presidente, que tem disseminado mensagens falsas, dificultando as pessoas a aderirem a medidas preventivas.”
Segundo Mário Scheffer, o artigo alerta para a dependência do Brasil na importação de vacinas e insumos, como ocorreu também na covid. “Por isso é muito importante a iniciativa do Instituto Butantan, que está em negociação com o National Institute of Health (NIH), dos Estados Unidos, visando à produção da vacina contra monkeypox no Brasil, diante do aumento de casos e mortes no País”, ressalta.
“Por fim, destacamos que os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil têm um histórico de respostas exitosas no combate ao HIV e a outros surtos e epidemias, como de dengue, zika, febre amarela e chikungunya”, destaca Mário Scheffer. “Se o Ministério da Saúde, que abriu mão da coordenação nacional durante a covid, voltar a liderar a articulação com Estados e municípios, a monkeypox será mais adequadamente controlada no País.”
Lorena Barberia aponta que há muito interesse dos pesquisadores no diálogo com o novo governo federal sobre como o Brasil poderia responder melhor tanto à covid-19 quanto à monkeypox. “Estamos reunidos na Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade e parte do que tem orientado muito nosso trabalho desde a pandemia de covid-19 tem sido a questão de procurar produzir informações baseadas em evidências, que auxiliem os governos a reagir e responder melhor aos desafios provocados por estas ameaças, e como as evidências apontam certas falhas em políticas que precisam ser fortalecidas e respostas que precisam ser melhoradas”, conclui.
Mais informações: e-mail lorenabarberia@usp.br, com Lorena Barberia