Um relatório detalhado produzido pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP e pela Universidade Federal Fluminense (UFF) revela a reprodução, produção e institucionalização do racismo estrutural no sistema de justiça brasileiro. Com 167 páginas, o documento analisa as dinâmicas discriminatórias em tribunais estaduais e oferece recomendações para políticas públicas que promovam a equidade racial. O texto destaca como o racismo estrutural se manifesta na sociedade brasileira, permeando as relações políticas, econômicas e institucionais, e aborda também o racismo institucional, que opera no funcionamento das instituições de forma a consolidar privilégios raciais.
O relatório Características do Racismo (Re)produzido no Sistema de Justiça: Uma Análise das Discriminações Raciais em Tribunais Estaduais, coordenado pelos professores Paulo Eduardo Alves da Silva, da FDRP, e Pedro Heitor Barros Geraldo, da UFF, foi desenvolvido entre agosto de 2023 e junho de 2024 no âmbito do Programa Justiça Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que recebeu os resultados na última semana de novembro. A pesquisa foi conduzida por uma equipe interdisciplinar, com observações feitas em 23 audiências realizadas em tribunais estaduais de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Amapá, além de entrevistas com 52 profissionais negros do setor jurídico.
Desigualdades raciais e de gênero
Entre os resultados apresentados destaca-se o diagnóstico étnico-racial do Poder Judiciário, que aponta que 83,9% dos magistrados brasileiros são brancos, enquanto apenas 14,5% se identificam como negros. Essa sub-representação também é evidente na advocacia: embora pessoas negras representem 56% da população brasileira, somam apenas 33% dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Além disso, pessoas negras estão predominantemente em cargos hierarquicamente inferiores, como estagiários (41%) e servidores (29,1%), revelando uma evidente falta de representatividade. Essa desigualdade se agrava quando combinada com questões de gênero, já que mulheres negras ocupam ainda menos posições na magistratura.
As microagressões enfrentadas por profissionais negros no sistema de justiça também são denunciadas. Entre elas estão deslegitimação pela falta de reconhecimento, interrupções em audiências, silenciamento de ideias e sugestões, desconfiança, questionamentos excessivos, tratamento diferenciado e até o uso desnecessário de algemas ou falta de informações adequadas para jurisdicionados negros.
Propostas para a equidade racial
O relatório também apresenta recomendações para a elaboração de políticas públicas que levem à equidade racial no sistema jurídico do País. Entre elas destacam-se: a criação de um Programa de Monitoramento de Práticas Discriminatórias, que incluiria a coleta de dados e relatos de discriminação racial, além do fortalecimento de políticas de cotas, com reserva de vagas em todas as etapas dos concursos públicos. Sugere-se também a flexibilização de notas mínimas para ampliar o acesso de pessoas negras às carreiras jurídicas.
Outra medida proposta é a criação de comitês antirracistas que atuem no desenvolvimento de políticas públicas, com foco em uma abordagem interseccional para tratar das desigualdades de gênero e raça. Esses comitês teriam como objetivo apoiar profissionais negros, monitorar as condições de trabalho e propor estratégias para reduzir os impactos do racismo, incluindo questões de saúde mental.
O letramento racial também é destacado como uma ferramenta essencial. O relatório sugere a obrigatoriedade da educação antirracista nos currículos das escolas da magistratura e em cursos de capacitação para profissionais do sistema jurídico, bem como a padronização de procedimentos judiciais e investigatórios para evitar práticas discriminatórias.
Sobre a iniciativa
Os levantamentos e as análises foram feitos por uma equipe interdisciplinar, além dos professores Silva e Geraldo, participaram as pesquisadoras Juliana Sanches, da UFF, e Lorena Cristina da Silva Mello, da FDRP, além das assistentes de pesquisa Bruna Mota de Paula e Kelly Cristiane Canedo Araújo, ambas da FDRP.
A pesquisa contou com o apoio de organizações como o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), além de ter participado de eventos como o Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (Enajun) e o Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação (Fonajurd), realizados em Brasília. Acesse o material completo neste link.
*Estagiária sob supervisão de Rose Talamone