Parentalidade positiva pode ser o caminho para romper ciclos de violência entre gerações

Programas de parentalidade são uma estratégia para tomada de consciência e mudança de comportamento dos pais e cuidadores nas práticas punitivas

 24/09/2024 - Publicado há 2 meses
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Em março deste ano, o governo federal sancionou a Lei 14.826/2024 que instituiu a parentalidade positiva como estratégia de prevenção à violência e ao abuso contra crianças. A legislação surge em concordância com o dever social de coibir o uso de tratamento cruel no cuidado com a criança, instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mesmo com as determinações, muitos pais ainda utilizam a violência como forma de disciplina. Para a professora Maria Beatriz Linhares, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, cuidadores usam maus-tratos porque perpetuam violência que sofreram na própria infância.

Maria Beatriz Linhares – Foto: Arquivo pessoal /ivepesp

Especialista em desenvolvimento infantil, Maria Beatriz informa que a violência contra as crianças acontece de diferentes formas, sendo a agressão física, caracterizada por tapas e beliscões, a mais comum. Porém, a violência também pode ser emocional, através da depreciação da criança, sexual, podendo chegar ao estupro de vulnerável, e pela negligência, que é a falta no atendimento às necessidades básicas da vítima. Independentemente do tipo, a violência é um evento estressor tóxico para a criança, afetando o desenvolvimento e o comportamento infantil.

“A violência tem impactos no desenvolvimento, tanto do ponto de vista físico quanto do ponto de vista psicológico. A criança pode apresentar tanto os chamados sintomas internalizantes, como medo, ansiedade e sintomas depressivos, quanto pode apresentar os externalizantes, comportamento mais agressivo, alteração do sistema de atenção, inclusive com comportamentos de hipervigilância para os estímulos ambientais.”

Os impactos da violência são negativos, mas, para 35% dos cuidadores infantis, dar palmadas é uma medida necessária para educar as crianças. O dado é de uma pesquisa do Projeto Pipas – Primeira Infância Para Adultos Saudáveis, com apoio do Ministério da Saúde, que coletou dados de cuidadores de 13.500 crianças entre 0 e 59 meses em 13 capitais. A informação reflete o registrado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2023: 18.805 casos de crianças, entre 0 e 17 anos, que sofreram lesão corporal dolosa no ambiente familiar.

Violência de pais para filhos

A professora esclarece que pais e cuidadores podem repetir padrões de violência vivenciados na própria infância. “Nesses casos, vamos estar diante de um fenômeno chamado violência intergeracional. Nós temos alguns estudos que mostram que mães que sofreram violência na sua infância e também estiveram diante de disfunções do ponto de vista da família, separação, criminalidade, abuso de drogas, tinham uma chance aumentada de repetir os maus-tratos nas práticas parentais educativas dos seus filhos”, diz a professora.

Uma das estratégias relevantes para romper o ciclo de violência intergeracional são os programas de parentalidade, que trabalham com os pais para promover práticas positivas no cuidado com a criança. É o que aponta o Inspire: Sete Estratégias para Pôr Fim à Violência Contra Crianças, documento da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Segundo o Conselho da Europa, principal organização de defesa dos direitos humanos naquele continente, a parentalidade positiva se refere aos comportamentos respeitosos de pais para filhos, acolhedores e não violentos, que promovem o reconhecimento e orientações com o estabelecimento de limites para fortalecer o pleno desenvolvimento da criança. 

Um dos programas de parentalidade positiva mais relevantes no Brasil é o ACT – Para Educar Crianças em Ambientes Seguros, recomendado pela OMS. O programa é da Associação Americana de Psicologia, desenvolvido em 2001, introduzido no Brasil há 12 anos pelas professoras Maria Beatriz e Elisa Rachel Pisani Altafim, da Pós-Graduação em Saúde Mental da FMRP.

O ACT é realizado com cuidadores de crianças entre 0 e 8 anos em oito encontros semanais em grupo, com duração aproximada de 120 minutos cada. Os encontros são realizados por um facilitador certificado, que é um profissional de nível superior (assistência social, saúde ou educação) que passou por treinamento teórico e prático para atuar como representante do projeto.

Os encontros envolvem atividades grupais, instrução didática e discussões sobre situações cotidianas na relação cuidadores-criança para estimular a redução das práticas coercitivas e punitivas, a implementação da disciplina positiva e a regulação emocional e comportamental dos pais.

Segundo a professora, entre agosto de 2020 e agosto de 2023, uma parceria entre a Universidade de São Paulo e o Governo do Estado do Ceará implementou o programa no Estado nordestino. A iniciativa, denominada ACT-Ceará, beneficiou 1.733 famílias de 24 municípios. Todas as famílias contempladas eram dependentes e beneficiárias de programas de transferência de renda.

“Investir em programas de parentalidade é uma maneira importante de romper o ciclos já que muitas vezes os pais repetem porque foi a maneira como eles aprenderam e não sabem fazer diferente. É importante refletir com os pais a tomada de consciência para mudar os comportamentos mais efetivos do ponto de vista da parentalidade positiva, porque, afinal, nós queremos investir no desenvolvimento mais sustentável para uma sociedade, que é o desenvolvimento da criança, a base do desenvolvimento humano”, finaliza Linhares.

*Estagiária sob supervisão de Ferraz Jr e Rita Stella


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