A incapacidade do Brasil em enfrentar o crime organizado é alvo de críticas contundentes de especialistas. O que está em discussão é saber qual será o ponto de inflexão, ou seja, o momento em que o Estado brasileiro não terá mais condições de combater o crime organizado e passar a ser um narcoestado, por exemplo. Alguns especialistas acham que esse momento está próximo, se nada for feito. Mas há estudiosos que dizem que as facções criminosas não têm interesse em dominar o Estado, mas em usar sua fragilidade para enriquecer e consolidar a atuação criminosa. O assunto foi pauta, inclusive, da entrevista recente ao Estado de S.Paulo do jurista Walter Maierovitch, desembargador aposentado e ex-aluno da Faculdade de Direito (FD) da USP.
Ele destacou que “o dinheiro da droga e da arma é reciclado em atividades formalmente lícitas”. Segundo Maierovitch, o Brasil descobre que as máfias são parasitárias: grudam no Estado, sugam e corrompem agentes públicos. O jurista alertou que facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) já vencem licitações em municípios para serviços como transporte público e coleta de lixo, além de financiar campanhas políticas e adquirir negócios legítimos para lavar dinheiro ilícito. A ampliação de sua influência, no entanto, não é um caso isolado, mas um reflexo de uma estrutura social e econômica que permite o fortalecimento dessas facções e enfraquece o Estado.
Diferenças regionais e impactos sociais
O professor Daniel Pacheco, da área de Direito Penal da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, alerta para as diferenças regionais no avanço do crime organizado. “Em algumas regiões, como o Rio de Janeiro, o Estado já é incapaz de intervir em áreas dominadas pelo crime. Por outro lado, em São Paulo, ainda não atingimos esse nível, mas estamos caminhando para lá”, afirmou. Segundo ele, as facções aproveitam-se da desigualdade social para recrutar novos membros e expandir suas atividades. “Enquanto houver tamanha disparidade econômica será difícil conter o avanço do crime organizado.”
Pacheco também critica a ineficiência na aplicação das leis. “Embora o Brasil tenha uma legislação penal robusta, a falta de aplicação efetiva das normas cria uma sensação de impunidade. Não é só uma questão de mudar leis, mas de aplicá-las de forma eficaz. Reduzir a desigualdade e garantir oportunidades iguais também são passos fundamentais para enfraquecer o crime”, enfatiza o professor.
Eduardo Dyna, pesquisador do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), reforça que cada facção tem dinâmicas específicas. “O PCC, por exemplo, já não é apenas uma organização criminosa. Ele se nacionalizou e internacionalizou, atuando em países como Paraguai e Bolívia, e se tornou um player importante no tráfico global de drogas. Ao mesmo tempo, mantém características singulares, como a ligação com o sistema prisional, que sustenta sua organização e influência em territórios periféricos”, explicou. Para ele, a falta de políticas públicas concretas para atender às demandas sociais criou brechas que permitiram a expansão das facções. “Esses grupos não querem substituir o Estado, mas explorar suas contradições para garantir seus negócios.”
A crise da segurança pública como projeto
Dyna também aponta que a crise na segurança pública brasileira não é só por falha administrativa, mas um projeto que perpetua desigualdades. “Precisamos refletir sobre quem lucra com a violência e quem se beneficia da insegurança pública. Combater facções como o PCC e o Comando Vermelho exige entender suas operações e também as condições que permitem sua existência”, afirmou. Ele sugere que ações repressivas sem planejamento estratégico podem gerar mais violência. “Os massacres em prisões e as rebeliões, como a de 2006 em São Paulo, mostram como a repressão desordenada fortalece o crime organizado e multiplica as organizações criminosas.”
O cientista social Vinícius Figueiredo, do Observatório de Segurança Pública da Unesp, ressalta que políticas baseadas apenas em encarceramento são ineficazes. “O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, e isso só aumenta o poder das facções. Precisamos de estratégias inteligentes que compreendam a complexidade desses grupos. Repressão pura só fortalece o ciclo de violência e a influência do crime organizado”, afirmou. Ele também destacou a importância de integrar políticas públicas que levem em conta as especificidades de cada organização criminosa. “Não há uma solução única. Cada facção tem suas particularidades, e o combate precisa ser ajustado a essas diferenças.”
Figueiredo ainda mencionou o impacto internacional do crime organizado no Brasil. “A América do Sul é uma das principais regiões exportadoras de drogas, e o narcotráfico sustenta muitas dessas organizações. No Brasil, o PCC mantém contatos com grupos internacionais e atua diretamente em fronteiras como as do Paraguai. Isso evidencia que o problema vai além das fronteiras nacionais e exige uma abordagem integrada com outros países.”
Os especialistas concordam que o enfrentamento ao crime organizado no Brasil requer medidas que vão além da repressão. “Precisamos investir em inteligência, fortalecer instituições e adotar políticas de longo prazo que priorizem a igualdade social e o desenvolvimento das regiões mais vulneráveis. Sem isso, continuaremos a alimentar um ciclo vicioso de violência e corrupção”, concluiu Pacheco. Para ele, combater o crime organizado é também combater as causas que o fortalecem, como a pobreza, a desigualdade e a ausência do Estado nas áreas mais necessitadas.
Por: Ferraz Junior e Rose Talamone
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