Como a psicologia islâmica pode contribuir para o bem-estar de muçulmanos

Embora os estudos sobre psicologia islâmica ainda sejam escassos no Brasil, saúde mental é uma parte importante da tradição que pode estimular o bem-estar dos pacientes

 28/03/2023 - Publicado há 1 ano
Por
A psicologia islâmica considera a saúde mental como parte importante da tradição islâmica – Foto: Maymona/Flickr-CC

 

A psicologia da religião é uma grande área de pesquisa internacional, mas no Brasil  estudos sobre o tema ainda são escassos. Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, com orientação do professor Manoel Antônio dos Santos, a pesquisadora Sálua Omais — graduada em Odontologia, Direito e Psicologia — investigou as contribuições da psicologia islâmica para o bem-estar de muçulmanos. 

Sálua Omais atualmente é doutoranda pela USP e pela Cambridge University – Foto: Reprodução / Researchgate

Segundo a pesquisadora, as teorias psicológicas clássicas foram construídas sob uma perspectiva ocidental, mas “a psicologia não pode ser construída somente sobre uma visão de mundo”, e destaca outras abordagens psicológicas, como a psicologia negra, a psicologia africana e a psicologia judaica.  

No artigo Psicologia islâmica: Uma visão panorâmica sobre modelos e concepções teóricas da psiquê humana, Sálua enfatiza que a Psicologia Islâmica, relacionada à teologia e à religiosidade, considera a saúde mental como uma parte importante da tradição, história e legado islâmicos. Por isso, Sálua defende uma “abordagem espiritualmente integrada”, visto que a religião é um conjunto de crenças, rituais e condutas que influenciam comportamentos humanos, cognições, e, consequentemente, as emoções. “As cognições das pessoas e, consequentemente, as emoções também”, afirma. 

A pesquisadora destaca os benefícios da religiosidade e espiritualidade sobre a saúde física e mental, e sustenta a necessidade de incluir, nos processos terapêuticos, novas abordagens que possam se aproximar da realidade de vida do sujeito e incluir as crenças que o influenciam, junto com os valores que são mais significativos e alinhados ao estilo de vida do paciente.

“Durante muito tempo, os profissionais interpretaram de forma errada o código de ética, quando ele diz que não se pode induzir um paciente a uma religião ou convicção política, ideológica. Mas induzir é muito diferente de acolher e trabalhar algo que o paciente já traz com ele. O que não pode é o psicólogo interferir ou querer mudar a opinião do paciente sobre algo que faz sentido para ele. A religiosidade e a espiritualidade fazem parte da vida das pessoas. Então, isso não pode ser separado da vida do cliente”, aponta.

No Islã, conta a pesquisadora, “é a partir da religiosidade e espiritualidade que muitos comportamentos são direcionados”. As condutas e o incentivo a comportamentos virtuosos, como perdão, gratidão, amor e generosidade encontram respaldo teórico no Alcorão, de forma que a utilização desses ensinamentos junto a abordagem terapêutica “ajuda o cliente a construir e e associar significados positivos a esses comportamentos validados pela religião”, diz. 

Espiritualidade como base do bem-estar

Participaram da pesquisa cinco sheiks (título concedido a quem possui autoridade em assuntos islâmicos) sunitas que residem no Brasil há pelo menos 15 anos e o primeiro tradutor do Alcorão para a língua portuguesa. A coleta de dados foi feita em duas etapas. Na primeira, os participantes preencheram um formulário com palavras-chaves que representavam alguns dos elementos do modelo PERMA – criado pelo psicólogo Martin Seligman, conhecido como um dos precursores da Psicologia Positiva – e que trazia componentes ligados ao bem-estar. A pesquisadora usou os elementos desse modelo como base, “para ver como isso é trazido pelo Alcorão”. 

+ Mais

Pesquisadores da USP lançam o primeiro relatório sobre islamofobia no Brasil

Apesar da vasta produção literária, escritos de mulheres palestinas foram marginalizados

Na segunda etapa, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas sobre comportamentos relacionados ao bem-estar e à felicidade do ponto de vista islâmico. “Por exemplo, como a felicidade é abordada no Islã; como a religião enxerga essa relação das emoções positivas e negativas; as virtudes e forças individuais encorajadas no Alcorão; como elas são encorajadas; como o Alcorão fala sobre relacionamentos, sobre sentido e propósito, sobre saúde e bem-estar”, explica Sálua. 

“Desde o início, já ficou bastante evidente nas entrevistas com os sheiks que a espiritualidade é a base do bem-estar”, afirma a pesquisadora sobre os resultados. Segundo ela, as orações e rituais islâmicos também podem influenciar o bem-estar aos fiéis. “A base de uma vida equilibrada no Islã é a soma desses rituais e condutas, que aproximam e reforçam essa conexão com Deus”, acrescenta. Por essas razões, a pesquisadora demonstra que esses recursos da religião podem ser empregados para trabalhar as angústias do paciente e como uma fonte de apoio em momentos de fragilidade, já que “a religião oferece esse conforto diante de situações difíceis”. 

Ainda segundo Sálua, a psicologia tem uma raiz profunda no mundo islâmico. “As dimensões espirituais de um paciente são fundamentais ao bem-estar, porque a própria religião traz elementos que podem ajudar e facilitar a superação diante de momentos difíceis e situações desafiadoras. Os conteúdos religiosos ajudam a ressignificar positivamente alguns comportamentos e situações de vida”. 

Bem-estar social e individual

Outro ponto destacado pela pesquisadora é que, de acordo com o Islã, o “bem-estar individual não existe sem o bem-estar social e vice-versa”, estando essas duas dimensões conectadas. “No Islã, essa parte da comunidade é extremamente importante”, lembra Sálua, e o comportamento social é tido como uma prática religiosa, assim como a espiritualidade que “está em muitos comportamentos que o muçulmano realiza”. 

O Alcorão e a Sunna (livro que contém os ensinamentos do profeta Muhammad), além de outros ensinamentos religiosos, “incentivam e preconizam comportamentos pró-sociais”, afirma Sálua. Ou seja, ser generoso com o próximo é uma prática religiosa assim como as orações. “À medida que o muçulmano consegue compreender isso e seguir as prescrições de conduta, de boas maneiras e também relacionadas aos rituais em si, ele passa a construir novos sentidos sobre a felicidade sob uma visão mais espiritual, e compreendê-la de forma mais ampla e abrangente”, afirma. 

Além disso, a grande fonte de força e apoio que a religião representa pode fortalecer o vínculo entre os pacientes e os profissionais. “A confiança do paciente ao saber que aquele profissional se interessou em abordar algo que para ele tem muito valor, que a é religião, traz um olhar, muitas vezes, de admiração, fortalecendo o laço entre ambos”, completa a pesquisadora. 

Ouça no player abaixo entrevista da pesquisadora à Rádio USP:

O artigo Psicologia islâmica: Uma visão panorâmica sobre modelos e concepções teóricas da psiquê humana é parte do doutorado de Sálua Omais, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP, que desenvolve, atualmente, parte da pesquisa na Faculdade de Divindade da Universidade de Cambridge e no Cambridge Muslim College, no Reino Unido.

 

Mais informações: saluaomais@hotmail.com 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.