Campanhas de motivação à atividade física não atingem as classes menos favorecidas

Fundamental para a manutenção da saúde, exercício físico é um hábito que depende da educação, cultura e das condições de vida para ser adotado, revela estudo brasileiro e espanhol

 21/09/2020 - Publicado há 4 anos
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Montagem sobre fotos USP Imagens

Estar há meses em casa sem praticar exercícios físicos, infelizmente, é a realidade de grande parte da população brasileira e espanhola. Este cenário não é só culpa da própria pessoa ou da covid-19, embora a pandemia tenha piorado muito condições que já não eram favoráveis. Dados de 2015 do Ministério da Saúde da Espanha e do extinto Ministério do Esporte do Brasil mostravam que apenas cerca de 50% das pessoas praticavam esportes ou exercícios físicos rotineiramente antes da pandemia. Se esse número já não era satisfatório, o que dizer de somente 5% de brasileiros e 19% de espanhóis declararem praticar exercício em casa.

Preocupado com as implicações do necessário distanciamento social e as campanhas institucionais contra o sedentarismo, especialmente no confinamento, o professor Renato Marques, da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP) da USP, alerta a população que o hábito do exercício físico precisa “ser adotado pelo indivíduo” já que é fundamental para a saúde. Porém, essa adoção, como para qualquer hábito, não depende somente da vontade e da pessoa saber que é importante. Para “adotar o hábito de exercitar-se” é necessário que o indivíduo “tenha sido educado para o exercício físico, assim como tenha acesso a condições de vida que permitam tal adesão”, argumenta o professor.

Mas, antes da educação, Marques lembra que classes economicamente menos favorecidas podem não ter tempo, recursos e espaço suficientes para se dedicar ao hábito de se exercitar, especialmente quando restritas ao espaço do lar. Essas conclusões são parte dos estudos realizados pelo pesquisador catalão Pau Mateu, da Universidade de Barcelona, Espanha, sob orientação do professor Marques, especialista em Sociologia do Esporte na EEFERP. Mateu passou o segundo semestre de 2019 na USP de Ribeirão Preto, analisando, entre outros temas, as desigualdades socioeconômicas e socioculturais para a predisposição e acesso à prática esportiva e de exercícios físicos, quando no início de 2020 viu o mundo ser tomado pelo novo coronavírus.

Foto: Ricardo Vieira – flickr

Marques e Mateu, então, reuniram as informações obtidas sobre as “condições estruturais de vida” desfavoráveis dessa grande parcela da população para dizer às autoridades que as campanhas de motivação ao exercício em casa não necessariamente atingem as classes menos favorecidas, seja pela falta de educação para o exercício físico, seja pela condição econômica. Segundo Marques, a realização de campanhas de motivação ao exercício, quando não acompanhada de políticas públicas para melhorar as condições de vida das pessoas, incorre no “risco de culpabilizar a vítima”, ao dizer simplesmente que só depende delas a adesão à prática dos exercícios.

Para chegar às condições estruturais de vida, que precisam estar preenchidas para que o hábito da atividade física faça sentido, os pesquisadores tomaram emprestadas as ideias do sociólogo francês Pierre Bourdieu sobre a interdependência do acesso aos capitais (econômicos, culturais, sociais, simbólicos) para a liberdade de escolha. Assim, “quanto melhores são os recursos econômicos e culturais, maior é o horizonte de escolhas da pessoa, e maior é a chance de adesão ao exercício físico como rotina”, conclui Marques. E isso, num cenário normal, a pandemia “só agrava essa distinção” de classes.

O professor explica que as condições materiais (espaço em casa, tempo para lazer) e culturais (acesso à orientação profissional, ao conhecimento e hábito familiar) reforçam a distinção entre os diferentes grupos quanto ao hábito da prática de atividade física em casa. Nesse ponto, o professor usa outra ideia de Bourdieu para afirmar que não se pode “exigir prática de exercícios em casa sem antes mudar as condições estruturais – tempo de lazer, educação para o exercício, ganhos econômicos”.

Quem tem casa pequena, alta carga de trabalho em home office, carga de trabalho doméstico acentuada (filhos, limpeza, cozinha) não tem a mesma liberdade de aderir ao hábito do exercício físico que aquele que já tem essas necessidades garantidas e maior tempo livre. Para Bourdieu, a disposição para buscar o necessário para a manutenção da vida são os “gostos de necessidade”, que precisam estar satisfeitos para a disposição aos “gostos de liberdade”. Como explica Marques, “com as necessidades básicas garantidas, sabendo que não vai passar fome, então a pessoa pode escolher uma comida melhor”.

Contra o sedentarismo, acesso econômico e investimento em educação

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Mesmo sabendo que a resposta para o problema do sedentarismo está longe de solução fácil, Marques e Mateu acreditam que “políticas públicas possam repensar as condições estruturais de vida das pessoas”, principalmente as das menos favorecidas. O acesso econômico, com garantias de trabalho e de tempo de lazer, “pode ampliar os horizontes de escolha e adesão ao exercício físico”.

Mas, garante Marques, não basta terem tempo e recursos para momentos de lazer ativo se as pessoas “não são educadas para o exercício físico”. Por isso, defende o investimento na educação para que a atividade faça sentido, seja escolhida e se torne um hábito. A escola, enfatiza o professor, deve oferecer espaço para a criança aprender a se exercitar, conseguir interpretar aulas, vídeos, textos sobre exercícios.

Com o tempo e o investimento nessas políticas, acredita Marques, haverá “uma facilidade maior para educar as pessoas e aí sim motivá-las, incentivá-las a aderir à prática do exercício”.

As ideias dos pesquisadores, analisando a prática do exercício físico diante da situação de pandemia provocada pelo novo coronavírus na Espanha e no Brasil, foram publicadas em artigo recente na revista Sociología del Deporte.

Mais informações: e-mail renatomarques@usp.br


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