Igualdade - Foto: Freepik - Pixabay

Reforçar o papel social de "rainha do lar" sobrecarrega apenas a mulher

Muitos empregadores se preocupam na contratação de mulheres, quando sabem que elas são mães, mas não se preocupam quando contratam homens pelo fato de eles serem pais

 14/07/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 11/08/2022 às 17:37

Texto: Rose Talamone

Arte: Simone Gomes

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Há uma construção histórica em torno dos papéis de gênero na sociedade. Homens e mulheres são divididos em dois grupos sociais que seriam responsáveis por tarefas diferentes. 

Essas “responsabilidades familiares” é o tema do segundo episódio da série Mulheres e Justiça. A professora Fabiana Severi recebe Regina Stela Vieira, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina. 

Regina lembra que enquanto os homens são vistos como provedores, responsáveis por ocupar os espaços públicos, o mercado de trabalho e a política, as mulheres são tidas como cuidadoras, como se naturalmente estivessem predispostas ao espaço privado, à manutenção da casa e à criação dos filhos, o que nos estudos feministas é chamado de divisão sexual do trabalho. “O papel social dos homens é muito mais valorizado, isso fica evidenciado nas desigualdades que acontecem no mercado de trabalho. Muitos dos empregadores se preocupam na contratação de mulheres, quando sabem que elas são mães, mas não se preocupam quando contratam homens pelo fato de eles serem pais.” 

A professora afirma que a pressão sobre as mulheres cresceu muito durante a pandemia, pois o pouco de cuidados que eram transferidos socialmente, como a formação das crianças nas escolas infantis e no ensino fundamental, voltou para dentro das casas durante a crise sanitária e as mais penalizadas foram as mulheres.

Durante séculos, diz a professora Regina, donas de casa são  tidas como mulheres que não trabalham, como se lavar, passar, cozinhar e  cuidar dos filhos não gerassem desgastes, inclusive físico. Dados de 64 países, levantados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), revelam que 16 bilhões de horas são gastas com trabalhos não remunerados por dia, ou seja, dois bilhões de pessoas trabalhando oito horas por dia sem remuneração. Se esse serviço fosse pago no valor de um salário mínimo seria quase 10% do PIB global. “O trabalho doméstico é um exemplo de trabalho não remunerado e é, majoritariamente, realizado por mulheres. Quanto as famílias gastariam ou quanto precisariam de políticas públicas para ter creches integrais, comprar alimentação pronta, lavar roupas em lavanderias?” 

Regina Stela Vieira - Foto: Reprodução/Academia.Edu
Regina Stela Vieira - Foto: Reprodução/Academia.Edu

Responsabilidades além do gênero

Nos últimos casos de denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão, nos quais os empregadores alegaram que as funcionárias eram  membros da família, a professora diz que essa situação evidencia mais uma vez a naturalização do papel da mulher como cuidadora, como se fosse um dom e, ainda, “mostra a perversidade que opera a sociedade quando, somado o gênero a outros marcadores – como raça, etnia e classe – deixam claro quem é mais ou menos responsabilizado por esse tipo de trabalho”. 

As mulheres são mais de 90% das trabalhadoras domésticas no Brasil e 65% são negras e nas últimas denúncias de trabalhos análogos à escravidão nessa função todas eram negras. E as denúncias desse tipo de trabalho aconteceram em famílias tidas como tradicionais ou de cidadãos de bem. “O engenheiro brasileiro, que pediu clemência à justiça norte-americana por ter sido denunciado por manter a funcionária em regime de trabalho escravo, usou como justificativa para não ser condenado que era um alto profissional e isso arruinaria a sua vida, como se ele não tivesse arruinado a vida da mulher que explorou.”

Para a professora Regina, reforçar a ideia de que existe uma família tradicional como sendo o ideal social acaba excluindo os diversos modelos de família e retira do governo responsabilidades previstas na Constituição, como a proteção social, um direito de todos e responsabilidade do Estado. “Ignoram-se, portanto,  as famílias monoparentais, que no Brasil são mais de 80% chefiadas por mulheres, e as duplas e triplas jornadas assumidas por elas quando precisam somar trabalho dentro e fora de casa, situação que se agrava quando elas não contam com redes de cuidado, ajuda de familiares ou vagas em creches ou outros equipamentos públicos.” 

O reforço do governo no papel da mulher na sociedade, como rainha do lar, pressupõe que elas arquem com todo trabalho de cuidado caladas, sem amparo. “’Refamiliarizar’ esse cuidado gera sobrecarga apenas sobre as mulheres, pressionando para que elas abandonem seus projetos pessoais”, afirma Regina. A professora finaliza dizendo que, ao criar a imagem de uma família tradicional, socialmente idealizada, o governo acaba por marginalizar grupos inteiros e nega amparo e políticas públicas para muitas outras realidades. “Colocar responsabilidades para as mulheres é fácil, mas o que precisamos é de políticas públicas que incorporem o cuidado e suas preocupações para que se garanta de fato igualdade no Brasil.” 

A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi e da jornalista Rosemeire Talamone. Na coordenação e edição geral: Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira. Apresentação, toda quinta-feira, no Jornal da USP no ar 1ª Edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7MHz e Rádio USP Ribeirão Preto 107,9MHz, ou pelo site www.jornal.usp.br


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