O sombreamento entre jornalismo e divulgação científicos

Na sexta edição da reportagem da série sobre jornalismo científico, publicada originalmente pela newsletter Jornalistas&Cia, apresentamos uma amostra dos vários aspectos que envolvem o dia a dia do tema

 24/06/2022 - Publicado há 2 anos

Por Luiz Roberto Serrano

“São atividades distintas, com funções distintas”

Herton Escobar - Foto: Arquivo pessoal

Divulgação e jornalismo científico são muitas vezes citados como atividades sinônimas; e de fato há um sombreamento grande entre elas, mas é importante destacar que são atividades distintas, com funções distintas. 

Uma diferença essencial é que o jornalismo trabalha apenas com informações inéditas. Ele tem a função de noticiar algo que acabou de acontecer, mesclando fatos, análises e opiniões de especialistas sobre aquele determinado acontecimento − por exemplo, o anúncio de uma descoberta, o lançamento de algum projeto ou a publicação de uma nova lei de política científica. Uma vez publicada a notícia, ela deixa de ser notícia. O jornalismo tem a função de informar à sociedade, não de educá-la, nem mesmo de fomentar o fascínio pela ciência − além da educação que é necessária para o próprio entendimento da notícia e do fascínio intrínseco gerado pela própria ciência que está sendo noticiada.

A divulgação científica, por sua vez, é algo mais amplo; um termo guarda-chuva que se aplica a qualquer comunicação de informações científicas – sejam elas inéditas ou não. Por exemplo: o jornalismo só vai falar sobre a possibilidade de haver vida fora da Terra quando houver alguma nova evidência ou pesquisa publicada sobre isso, enquanto a divulgação científica pode tratar desse tema a hora que quiser, da maneira que quiser, com a abordagem que quiser e quantas vezes quiser. Ela exerce uma função não apenas informativa, mas também educativa e de enaltecimento da ciência.

Em muitos aspectos, a divulgação científica é complementar ao jornalismo e também se alimenta dele como uma fonte de informações primárias. São atividades complementares, que coexistem numa relação mutualística, em que a ciência e a sociedade são as principais beneficiárias.

“Pautas de ciência ou balaio de gatos?”

A dra. Natalia Pasternak, diretora do Instituto Questão de Ciência, ganhou uma enorme visibilidade em todas as mídias a partir do surgimento da pandemia de covid-19. Segue a opinião dela sobre como poderá ser a cobertura de ciência pós-pandemia, enviada dos EUA, onde trabalha no momento. 

“É preciso lembrar como era a cobertura de ciência antes”

Natalia Pasternak - Foto: Arquivo pessoal

Primeiro é preciso lembrar como era o jornalismo de ciência antes da pandemia, porque houve uma extinção das redações de ciência, isso muito antes da pandemia. Os grandes veículos ou fecharam suas editorias, ou as fundiram com saúde e bem-estar, transformando as pautas de ciência em um balaio de gatos, onde na mesma página encontram-se reportagens sobre aquecimento global e a influência dos astros na saúde. Nesse sentido, a pandemia pode ter sido o gatilho para a reconstrução desse tipo de jornalismo, mas acho ingênuo acreditar que um tipo de jornalismo que sempre foi de nicho possa ganhar tanto espaço fora de um momento de emergência sanitária. A demanda por notícias de ciência pode até ter aumentado, mas ela tende a ser preenchida por notícias sobre o estudo da USP que mostra que pipoca causa Alzheimer e não por divulgação de ciência de qualidade. 

“Nos EUA, há mais veículos e dinheiro”

A experiência de quem escreve para o exterior

Meghie Rodrigues - Foto: Arquivo pessoal

A jornalista Meghie Rodrigues concorda com a informação de que, nos Estados Unidos, “o apoio da população aos investimentos em pesquisa científica e tecnológica é creditado à qualidade do jornalismo sobre o tema lá praticado”, que veiculamos no começo desta reportagem.

Dedicada ao jornalismo científico, depois de trabalhar em publicações e organismos brasileiros, cobre, como freelancer, ciência e tecnologia no Brasil e na América Latina para audiências internacionais, especialmente dos EUA.

Em função da pandemia, refugiou-se na cidade de São João, perto da nacionalmente conhecida Pato Branco, no Paraná. Graças às facilidades de comunicação proporcionadas pela internet, mantém contato constante com publicações internacionais e manda reportagens para veículos como os norte-americanos Nature e Scientific American, entre outros.

“É muito difícil comparar a cobertura de ciência no Brasil e nos EUA”, diz ela. “Lá há mais veículos e mais dinheiro no setor”, comenta. Mas não só. “Os veículos, inclusive o New York Times e o Washington Post, comportam-se como watch dogs, vigilantes, relatam a verdade para o poder”, inclusive na área de ciência.

Para ela, infelizmente a área não é valorizada no Brasil, apesar de a cobertura de meio ambiente estar crescendo. “É preciso ter recursos por trás, dar espaço aos profissionais competentes, especializados, que, apesar das dificuldades, estão aumentando.”

A visão de um instituto que investe em projetos de divulgação de ciência

Fundado em 2017, o Instituto Serrapilheira já apoiou quase 200 projetos de ciência e divulgação científica, somando mais de R$ 5 milhões em investimentos – tornando-se um importante incentivador da área no Brasil. O instituto aposta na construção de uma ciência baseada no risco, na originalidade e na diversidade, colaborando para a inserção da ciência no debate político e para efetivamente torná-la um projeto de Estado, e não de governo. Perguntamos ao instituto qual a visão do Serrapilheira sobre o jornalismo científico no Brasil, atualmente. 

Maior demanda por informações

Natasha Felizi - Foto: Arquivo pessoal

O jornalismo científico é uma ferramenta poderosa para aumentar a qualidade do debate público sobre ciência e combater a desinformação por meio da informação verificada e baseada em evidências. Alguns estudos recentes indicam que, na verdade, a sociedade brasileira tem, sim, interesse por ciência. Uma pesquisa do CGEE, de 2019, revelou que os brasileiros consideram os cientistas tão confiáveis quanto médicos como fonte de informação, e que respeitam e valorizam a ciência, mas têm pouco acesso a espaços culturais e baixo consumo de informações sobre ciência e tecnologia. Além disso, a confiança dos brasileiros na ciência cresceu durante a pandemia. Outra pesquisa de 2019, do INCT-CPCT, mostrou que, apesar do interesse dos jovens pela ciência, a maior parte não sabe citar o nome de um cientista brasileiro ou de uma instituição de pesquisa brasileira. Esses resultados indicam uma demanda por maior circulação de informações, análises e histórias sobre ciência no País, pois, embora a sociedade entenda a importância da ciência e se interesse por ela, recebe pouca educação sobre isso ao longo da vida e sabe pouco sobre o tema. Mas o jornalismo científico e toda a circulação de informações baseadas em evidências estão inseridos nos mesmos ecossistemas onde circulam campanhas massivas de desinformação. A assimetria entre os modos de produção de informações baseadas em evidências e conteúdos que propagam a desinformação, somada ao fato de uma população com pouco acesso à educação científica e midiática, dificulta a circulação e a popularidade do jornalismo científico.  

(Veja o penúltimo capítulo na segunda-feira, 27/6, sobre o papel de José Reis no jornalismo científico)


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