O que é preciso para ser
um bom jornalista científico

Nesta quarta reportagem da série sobre jornalismo científico, publicada originalmente pela newsletter Jornalistas&Cia, os profissionais mostram que há condições a preencher para fazer uma cobertura séria e informativa dos temas da área

 22/06/2022 - Publicado há 2 anos

Por Luiz Roberto Serrano

“Jornalistas preparados, uma comunidade científica aberta e recursos”

Mariluce Moura - Foto: Arquivo pessoal

A cobertura de todos os assuntos na imprensa exige preparo dos profissionais. No caso do jornalismo científico, é preciso estar atento às suas especificidades e complexidades, dizem os jornalistas que trabalham na área. Citam alto grau de especialização e qualificação, curiosidade científica, conhecimento de política científica, do processo de produção da CT&I e o entendimento de que a ciência também é falível e tem limites, além de algum tipo de treinamento profissional. Vejo três condições absolutamente indispensáveis para isso: jornalistas bastante preparados; uma comunidade científica aberta, capaz de entender a importância e o papel próprio do jornalismo na difusão social da ciência; e recursos − financeiros e de infraestrutura, o que inclui meios e veículos de comunicação potentes. 

Em relação aos jornalistas, assim como para fazer um bom jornalismo econômico, político ou cultural, é preciso que o profissional conheça a dinâmica e tenha uma visão crítica do campo a que está voltado; no jornalismo de ciência dá-se o mesmo. É necessário ter noções claras sobre o método científico e a hoje vasta e sofisticada infraestrutura de produção do conhecimento, além de entender por que não há verdades definitivas em ciência. É preciso ter noção das formas pelas quais a comunidade científica se organiza, o sentido dos grupos e das instituições de pesquisa, perceber a importância que tem para essa comunidade (e para a sociedade) a publicação de artigos científicos em periódicos científicos, com resultados de pesquisa revistos por pares. É preciso acompanhar os lances básicos da política científica dentro e fora do País e ter algum conhecimento de história da ciência, em especial dos percursos que conformam a chamada “tecnociência contemporânea”. E, claro, aprofundar-se um tanto mais na área que pretende cobrir com mais fôlego, seja evolução, genômica, química de produtos naturais, mudanças climáticas, astrofísica, neurociência etc., etc. Finalmente, é preciso que saiba ler os artigos científicos, porque eles serão material básico para o seu trabalho. 

“A matéria-prima essencial é o jornalista científico de qualidade”

Herton Escobar - Foto: Arquivo pessoal

“A matéria-prima essencial do jornalismo científico de qualidade é o jornalista científico de qualidade, devidamente qualificado para lidar com a complexidade técnica que é inerente à cobertura da ciência. Claro que isso vale para qualquer outra área do jornalismo e qualquer outra atividade profissional: a qualidade do serviço ou do produto oferecido depende essencialmente da qualidade do profissional responsável por produzi-lo. Dentro de todas as temáticas abordadas pelo jornalismo, porém, acredito que a ciência seja uma das mais complexas de todas e, consequentemente, uma das que exigem o mais alto grau de especialização e qualificação por parte dos jornalistas. Digo isso em função da complexidade técnica inerente à ciência, da enorme variedade de temas que a ciência abrange e do dinamismo com que ela evolui. 

O bom jornalista científico precisa estar preparado para lidar no dia a dia com temas tão variados quanto genética, nanotecnologia, física de partículas, inteligência artificial, astronomia etc; e isso exige muito estudo, muita leitura ao longo de toda a vida, pois todos esses campos evoluem de forma extremamente dinâmica. O bom jornalista científico, portanto, nunca pode se dar ao luxo de parar de estudar. O conhecimento científico não é algo intuitivo, não é algo que pode ser improvisado pelo repórter no meio de uma entrevista. Do ponto de vista individual, portanto, pode-se dizer que o bom jornalismo científico exige qualificação extrema e constante por parte do jornalista. Do ponto de vista institucional/empresarial, uma boa cobertura científica exige que o veículo de comunicação tenha bons jornalistas de ciência em seus quadros − não é viável imaginar que a cobertura de ciência possa ser delegada aleatoriamente a qualquer repórter, sem a qualificação adequada, de acordo com a demanda.  

“É necessário ter formação, competência, curiosidade científica...”

Graça Caldas - Foto: Reprodução UEM

Em primeiríssimo lugar, é necessário ter formação, competência, curiosidade científica, conhecimento de política científica, do processo de produção da CT&I e sobretudo o entendimento de que a ciência também é falível e tem limites. Entender os mecanismos que possibilitam a construção do conhecimento, a importância das evidências científicas. Cultura geral, visão histórica, leitura diária de diferentes áreas do conhecimento, não apenas da área científica. Isso porque tudo o que acontece no mundo da ciência está relacionado, de alguma forma, a política, economia, cultura etc. O exercício da cobertura de jornalismo científico pressupõe − como todo o jornalismo, aliás − lidar com a informação de maneira crítica e analítica, numa perspectiva cética, ligando sempre o desconfiômetro para estabelecer conexões entre a pesquisa e a sociedade. Para isso, se possível, além da graduação, creio ser necessária uma especialização lato sensu para melhor administrar as controvérsias tão presentes na área científica. Se fizer uma pós-graduação stricto sensu, mestrado e doutorado, também ajuda muito para entender os procedimentos, a lógica, os métodos de construção do conhecimento. Se isso não for possível, procurar ler livros que discutem o método científico, conversar com cientistas, visitar laboratórios, entre outras possibilidades. Importante lembrar que, no caso das Humanidades, o laboratório são a biblioteca e a sociedade em geral. Neste sentido, é fundamental a leitura diária de jornais, revistas, noticiário em geral, em diferentes veículos e plataformas.

“Algum tipo de treinamento profissional”

Luiza Caires - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O jornalismo científico exige, primeiro, algum tipo de treinamento do profissional que o pratica. Isso pode se dar de uma maneira formal, com disciplinas de graduação e pós-graduação, ou mesmo cursos de especialização; ou de um modo informal, em uma redação, trabalhando com colegas e editores experientes na área, onde possa produzir seus trabalhos de reportagem, com dicas e orientações, até conseguir trabalhar com mais independência em temas de ciência. 

Também exige valorização das pautas científicas por parte do veículo jornalístico. Tendo pouco espaço e atenção, sem uma editoria dedicada ou, no mínimo, editores que as considerem como prioridade, apenas notícias grandiosas e muito inusitadas terão vez, o que pode prejudicar inclusive a percepção pública da ciência como algo que funciona por pulsos e grandes descobertas, e não como um trabalho contínuo, de longo prazo, e passos menores − mas importantes − que se somam até a chegada. 

“Os mesmos princípios éticos e técnicos” 

Bruno de Pierro - Foto: Arquivo pessoal

O jornalismo de ciência baseia-se nos mesmos princípios éticos e técnicos que regem quaisquer outras especialidades do jornalismo, tais como investigar acontecimentos, checar dados, mediar fatos para a interpretação e buscar contextualizações esclarecedoras. Tudo isso faz parte dos cânones da profissão. Evidentemente que a cobertura jornalística da ciência e da tecnologia guarda especificidades. Uma prerrogativa fundamental é entender que os mecanismos de produção do conhecimento científico variam de acordo com as áreas. Critérios e métodos de pesquisa empregados nas ciências médicas não são exatamente os mesmos nas ciências humanas, da mesma forma que o padrão de publicação dos resultados muda de um campo do conhecimento para outro. Saber disso é importante, porque leva à percepção de que, na verdade, existem várias ciências, cada qual constituindo um ethos particular. 

“Formação continuada que se prolongue vida afora”

Eugenio Bucci - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Para que um país tenha bons veículos e bons profissionais dedicados ao jornalismo sobre ciência são imprescindíveis a formação continuada de jornalistas (em cursos que não se limitem à graduação, mas se prolonguem pela vida afora, em formatos diferentes, em pós-graduação e em cursos de rápida duração) e uma cultura nas redações que valorize esse ramo (ou esse gênero), além de uma convivência regular entre repórteres, editores, cientistas e pesquisadores. 

Durante a pandemia, todas as redações e praticamente todas as pautas tiveram de se converter em uma editoria de ciência, pois o tema da verdade factual na pesquisa tornou-se um denominador comum do debate público, tendo alcançado inclusive a cobertura de política, a cobertura de internacional e a de economia. 

Foi, claro, uma temporada excepcional, que ainda não se encerrou. De forma geral, podemos dizer que o período da pandemia trouxe uma consciência maior da importância da ciência como base racional para a tomada de decisões de interesse público. Isso favoreceu a valorização do jornalismo científico. 

A expressão “divulgação científica” talvez não seja a melhor para nomear o jornalismo sobre ciência. A “divulgação” supõe uma cobertura menos crítica, preocupada apenas com o didatismo da linguagem. Já o termo “jornalismo” impõe a necessidade de um olhar crítico e independente sobre os fatos da ciência, o que está mais adequado ao espírito geral da imprensa. 

Creio que é possível, sim, que surjam bons jornalistas dedicados à cobertura da pesquisa científica. Temos hoje, aliás, grandes nomes nessa matéria. Marcelo Leite e Álvaro Pereira Júnior são dois nomes. 

(Veja o próximo capítulo nesta quinta-feira, 23/6, que tratará da cobertura de ciências na grande imprensa)


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