O jornalismo científico como esteio para o desenvolvimento

Neste segundo capítulo da reportagem “O jornalismo científico resiste e mostra o seu valor”, publicada originalmente pela newsletter Jornalistas&Cia, e está sendo reproduzida pelo Jornal da USP, damos a palavra a profissionais da área sobre o caminho que a atividade pode percorrer para ganhar mais espaço na mídia

 20/06/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 23/06/2022 as 11:02

Luiz Roberto Serrano

“Estamos extremamente atrasados’’

Luiza Caires - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O jornalismo científico pode ajudar a população a compreender melhor aspectos e funcionamento da ciência, o que já cria um ânimo favorável ao investimento nela – ninguém defende aquilo que não conhece ou não entende. Governos, especialmente os mais populistas que têm tido êxito em se eleger ao redor do mundo, definem suas prioridades pensando menos em longo prazo e mais em demandas imediatas do eleitorado. Mais do que nunca é preciso criar numa parte maior da população a cultura de que ciência e tecnologia importam para avançar em metas econômicas e de desenvolvimento humano. 

Mostrar o que a ciência nacional faz e pode fazer em reportagens não esgota, e nem é o único fim do jornalismo científico, mas entra na soma desta cultura favorável à ciência. Especialmente quando mostra a ciência aplicada e em conexão direta com a melhoria da vida das pessoas.

Estamos extremamente defasados. A maior parte da cobertura dos temas de ciência é feita por repórteres generalistas, sem intimidade com os meandros da ciência, e sem espaço, tempo e orientação para explorar melhor as pautas. Feita a ressalva a este quadro mais amplo, que é um pouco desanimador, ainda há iniciativas interessantes, assim como profissionais fazendo um ótimo trabalho.

“Houve progresso, mas em uma parcela reduzida de veículos”

Wilson da Costa Bueno - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A divulgação de ciência, tecnologia e inovação pelas mídias brasileiras tradicionais tem experimentado notável crescimento nos últimos anos pela emergência de temas de grande repercussão (mudanças climáticas, insegurança alimentar, covid-19, desmatamento da Amazônia e destruição da biodiversidade, viagens espaciais, astrofísica de maneira geral, Inteligência Artificial, dentre outros). Mas é preciso considerar que há milhares de veículos e programas jornalísticos no País e que essa realidade se aplica a uma parcela reduzida deles. Além disso, o incremento da cobertura de CT&I não significa melhor cobertura e, excetuados alguns poucos casos, ainda predominam a imprecisão das informações, a perspectiva sensacionalista, a falta de debate sobre as causas dos fenômenos (climáticos, nas áreas da saúde etc.) e sobre as suas soluções. Infelizmente, observa-se paralelamente o crescimento de uma onda anticiência, caracterizada pelo negacionismo. 

É triste reconhecer que autoridades (governantes e parlamentares) e mesmo membros da comunidade científica e especialistas (como no caso da cobertura da covid-19) têm contribuído para aumentar a circulação de informações falsas e imprecisas.

“Espaço ainda restrito”

Carolina Patrícia Aires Garbellini - Foto: FCFRP/USP

Comparado ao período pandêmico, o espaço pós-pandêmico ainda é restrito para o jornalismo científico, lamentavelmente. Ou seja, os benefícios sociais da ciência e a relevância dos cientistas como principais fontes de informação ainda são pouco veiculados, principalmente em mídias de acesso mais popular (TVs abertas, por exemplo). Muitas vezes, percebemos uma certa necessidade da mídia por pautas atrativas, como novas moléculas, novos medicamentos, novos tratamentos, experiências inéditas de rápida aplicabilidade social. Isso não acontece todos os dias no ambiente acadêmico. Entretanto, outros assuntos poderiam tornar-se pautas, como os conhecimentos básicos sobre índices glicêmicos de alimentos (quantidade de açúcar nos alimentos, essencial para o controle do diabetes), por exemplo.

Temos espaço nas mídias tradicionais para uma receita gastronômica, mas não um espaço para discutir as propriedades dos alimentos. A implementação regular de tais espaços, com foco na ciência, seria de grande valia e teria grande alcance, o que poderia contribuir inclusive para a tomada de decisão na hora de escolher ou não determinado alimento, como no caso deste exemplo. 

Enquanto assuntos como esse não forem instituídos como “pauta”, dificilmente teremos uma mudança nesse cenário. Quadros curtos com um pesquisador falando de forma simples sobre um conceito complexo têm grande potencial de aproximar a ciência da sociedade. Isso implica modificar as características da programação brasileira, introduzindo questões científicas simples que podem contribuir para maior autonomia e tomada de decisão pela população.

“Profissionais mais experientes e melhores salários perdem seus postos”

Vanja Joice Bispo Santos - Foto: Arquivo pessoal

O jornalismo científico no Brasil hoje é diferente, reflete as mudanças estruturais do jornalismo, mas com as particularidades nacionais e da conjuntura atual. Não existe aquele boom do jornalismo especializado observado em décadas anteriores, que propiciaram a criação de veículos e seções especiais em grandes veículos jornalísticos voltados para CT&I e questões ambientais. As agências de notícias e redações diminuíram. Profissionais mais experientes e com melhores salários perdem seus postos. Em contrapartida, multiplicaram-se experiências de agências e programas alternativos em novas plataformas. Grandes investigações jornalísticas são contadas em novos formatos na web e outras migram de veículos impressos para livros. Observa-se na web um novo perfil de cientista divulgador de seus conteúdos e jornalistas em canais próprios. Novos gêneros e formatos jornalísticos surgiram para contar histórias mais longas, convergindo linguagens. São mudanças interessantes porque aumentam a oferta de conteúdo. Temos ofertas, mas pergunto se temos mais leitores além dos que já estão nos círculos de pessoas interessadas por esses assuntos.

No Brasil, essa multiplicidade de ofertas acontece em uma conjuntura anticiência, autoritária, de precariedade da educação, de desorganização das políticas públicas e das instituições de um estado democrático. Não há estímulo para leitura, análise e reflexão crítica − veja a forma como vêm sendo tratadas e discriminadas as ciências humanas e sociais, com repercussões no campo do jornalismo e nas escolas. Todo o campo científico, mesmo em uma pandemia, sofre com a desvalorização de sua importância por gestores e o campo político. As instituições científicas e educativas vêm sendo minadas.

“Ninguém valoriza aquilo que não conhece”

Herton Escobar - Foto: Arquivo pessoal

É por meio do jornalismo que a maior parte da sociedade mantém-se informada sobre o desenvolvimento da ciência, seus avanços, desafios e conquistas. Vale aqui a máxima de que “ninguém valoriza aquilo que não conhece”, e o jornalismo é certamente um dos agentes de maior protagonismo na manutenção dessa relação entre ciência e sociedade − fortemente apoiado, nos últimos anos, pelo crescimento das atividades de divulgação científica nas redes sociais e outros meios digitais, que certamente ampliaram enormemente a quantidade de conteúdo sobre ciência disponível para consumo pela sociedade, mas que (vale ressaltar) também dependem fortemente do jornalismo stricto sensu como fonte de notícias e informações.

 

Para que um país se desenvolva cientificamente é preciso que o poder público valorize a ciência. Para que o poder público valorize a ciência, é preciso que a sociedade valorize a ciência e, consequentemente, cobre o apoio do poder público a ela. Para que a sociedade entenda a importância da ciência e lhe dê valor, ela precisa estar bem informada sobre o que acontece na ciência e como isso afeta a vida das pessoas. E quem cumpre essa função de manter a sociedade informada é o jornalismo (não isoladamente, pois há também outros atores relevantes nesse processo, como os educadores e divulgadores científicos, a comunicação institucional, o poder público etc. – mas volto a ressaltar: todos esses outros atores também se valem do jornalismo como fonte primária e indispensável de informações).

“Sem educação básica, divulgação de ciência é acessório”

Fabiola de Oliveira - Foto: Arquivo pessoal

“Se o País não oferece educação básica de qualidade para todos − e no Brasil sabemos que estamos muito longe de ter essa educação de qualidade universal −, a divulgação da ciência passa a ser quase que um acessório, ou alguma coisa distante para a maioria da sociedade.

Estamos saindo da era dos impressos, dos jornais e revistas impressos, sem que grande parte da população tenha adquirido o hábito de ler jornais e revistas. Hoje a maioria das pessoas se informa pela TV aberta e pelas mídias sociais, e por esses meios as pessoas assistem ao que mais se equipara ao grau e à qualidade da educação formal que receberam. Não é à toa que as TVs educativas estão à míngua e que os bons programas sobre ciência se restringem às TVs pagas, inacessíveis para a maioria. Na internet encontramos de tudo, mas cada qual vai buscar aquilo com que mais se identifica. Se a educação é ruim, a internet também tem tudo de ruim a oferecer. Inclusão digital é uma balela das grandes se você não tem “inclusão educacional”!

Cheguei a pensar que devíamos fazer divulgação científica para as elites pensantes do País, sobretudo para os tomadores de decisão − no caso da ciência, a classe política. Seria necessário “convencer” os políticos sobre a importância de se investir em ciência para o desenvolvimento social e econômico. Fiz isso por um bom tempo, e ainda faço, por força do ofício. Mas hoje, francamente, com essa classe política desnudada pela corrupção e pelo atraso sob todos os ângulos que se olhe, já não há muito horizonte para a divulgação científica. Talvez para as crianças e os jovens, onde pode haver alguma esperança…

Então, em resumo, o jornalismo científico é muito importante, mas precisa estar assentado em uma boa base educacional. Se o conhecimento científico não faz parte da cultura da sociedade, o jornalismo científico cai no vazio. Ou limita-se a retroalimentar os “pares”, ou a classe de cientistas entre ela própria, que é o que mais acontece.

“Mirar as populações jovens e as periferias”

Mariluce Moura - Foto: Arquivo pessoal

Percebo o jornalismo científico como pilar essencial da difusão dos fatos científicos numa sociedade. E dado que um efetivo, saudável e sustentável desenvolvimento da ciência num país pressupõe a apropriação da cultura científica por sua sociedade, o jornalismo científico torna-se peça fundamental para esse desenvolvimento da ciência em termos amplos. Em razão disso é que, num país tão dramaticamente desigual como o Brasil, parece-me imperioso mirar as populações jovens e as periferias para pensar projetos de jornalismo científico capazes de incluí-las na cultura científica ou, dito de outro modo, para facilitar a apropriação de dimensões da ciência que moldam fortemente a vida social contemporânea na cultura popular.

“A extensa cobertura da covid não foi uma exceção positiva”

Bruno de Pierro - Foto: Arquivo pessoal​

Se falamos em termos de espaço e tempo dedicado a reportagens com conteúdo científico, sim, a pandemia pode ser interpretada como um período de exceção. Mas se pensarmos em termos qualitativos da cobertura científica, não houve uma “exceção” positiva. Evidentemente que a ciência nunca esteve tão destacada na mídia em geral como ocorreu durante as primeiras ondas de covid-19 no País e no mundo. Vimos cientistas o tempo todo falando de vírus, testes diagnósticos, variantes e outros assuntos técnicos em telejornais como o Jornal Nacional, que ainda tem uma audiência relevante. A transmissão ao vivo da CPI da Covid-19 mostrou rostos de pesquisadores e divulgadores de ciência que, àquela altura, já eram conhecidos do grande público. Passamos a ter a figura do “comentarista científico” em alguns programas de TV e frequentemente a capa de grandes jornais e revistas semanais estampou temas da ciência, especialmente aqueles relacionados à busca por tratamentos e vacinas contra a covid-19.

Ao mesmo tempo, observou-se um fenômeno interessante: jornalistas que nunca haviam lidado com ciência e tecnologia foram escalados para atuar na linha de frente da pandemia. Repórteres que nunca haviam falado sobre ensaios clínicos, mutações de vírus, anticorpos neutralizantes e metodologias de pesquisa precisaram encarar, com muita agilidade, um novo vocabulário, para o qual não estavam preparados. O esvaziamento das redações e do jornalismo de ciência cobrou um preço, que foi a dificuldade da imprensa não especializada em noticiar fatos científicos diariamente. Soma-se a isso a crise de credibilidade vivida pela imprensa – face às “notícias” fraudulentas disseminadas por portais duvidosos, apenas aparentemente jornalísticos –, o que deixou mais clara a necessidade de preparação dos jornalistas em temas científicos e de saúde. Talvez esse seja um dos legados da pandemia para a imprensa.

(Veja o próximo capítulo nesta terça-feira, 21/6, que tratará do espaço do jornalismo científico nas mídias digitais)


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