A discussão sobre se o movimento nazista alemão – cujo governo matou milhões de pessoas e levou à Segunda Guerra Mundial – teria as mesmas origens do marxismo voltou depois das declarações do presidente Jair Bolsonaro e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. O ministro afirmou, em Jerusalém, que uma nova vertente de pesquisadores vê semelhanças entre o movimento nazista e a extrema esquerda, e sugere que as pessoas “estudem” e “leiam a história de uma perspectiva mais profunda”. Após visitar o Memorial do Holocausto, o presidente Bolsonaro defendeu que o nazismo foi um movimento de esquerda.
O Jornal da USP no Ar analisa o tema, pela perspectiva do discurso e da história. O primeiro ponto é abordado por Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da USP e especialista do discurso nazista. A abordagem histórica é retomada com Everaldo de Oliveira Andrade, professor do Departamento de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Análise do discurso
De acordo com Blikstein, “o discurso nazista tinha um foco fundamental: enaltecer o povo alemão em defesa direta dos chamados arianos, uma população que viveu na Índia antiga e que corresponde à origem dos povos de línguas indo-europeias, entre elas o povo e a língua alemã”. Essa é a origem do arianismo, movimento que constitui o eixo da ideologia nazista.
“A questão referente às tendências de esquerda ou de direita fica muito aquém do foco fundamental do nazismo”, afirma o especialista. O movimento desenvolveu diversas frentes por meio da propaganda e de discursos. Dentre eles, estava o antissemitismo, contrário do arianismo, e o anticomunismo, adversário do nazismo ao buscar o apoio das classes populares.
Um exemplo citado por Blikstein consiste na ilustração do tabloide Der Stürmer (O Tempestuoso), que representava Trótski com o rosto típico de caricaturas judaicas por orelhas e nariz enormes, além de chifres na cabeça como referência à figura do diabo.“Trótski [um dos líderes do comunismo da Rússia e adversário de Stalin] era judeu e comunista. [A imagem era acompanhada] de um slogan que dizia que ‘judeus são a nossa desgraça, e o comunismo também’. Então Trótski encarnava os inimigos do povo: os judeus e o comunismo”.
Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães era o nome do partido liderado por Hitler. O professor aponta que colocar o “nacional” em primeiro lugar enfatizava a importância do nacionalismo. “Era importante que o partido nazista celebrasse a necessidade do nacionalismo alemão, e que fosse um nacionalismo com raízes populares [representado pela palavra folks, que indicava o povo].”
Ainda de acordo com ele, “a questão do apoio à extrema direita acabou ficando em uma posição secundária”, mas a propaganda nazista optou por não insistir nos ataques à burguesia e ao capitalismo, porque precisava desse capital. “O foco principal acabou sendo o semita, o judeu – não só o judeu, mas as ‘antirraças’ que eram consideradas degeneradas (ciganos, negros e também os homossexuais e deficientes físicos), que não poderiam contaminar o ariano alemão, a raça pura que garantiria a paz e felicidade para o mundo.”
Quanto ao movimento negacionista que trata o Holocausto como algo que não existiu, Blikstein ressalta que se trata de algo falso. O Holocausto existiu e está comprovado pelo livro Os crematórios de Auschwitz: a maquinaria do assassínio em massa, de Jean-Claude Pressac. “Na verdade, o que aconteceu é que o genocídio praticado pelo nazismo foi único, porque partiu de uma teoria da qual os seguidores estavam completamente convencidos”, questão abordada no livro Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o Holocausto, de Daniel Goldhagen. A obra diz justamente que “a Alemanha inteira sabia do que estava acontecendo e não reagiu porque Hitler estava oferecendo a prosperidade ao povo alemão”.
Perspectiva histórica
Para Andrade, “a afirmação do presidente é preocupante”, no que diz respeito a uma identidade entre o comunismo, o socialismo e o movimento nazista. “Não sei se é por falta do conhecimento elementar, que os estudantes têm já no fundamental, sobre isso. Se é uma questão que visa a desqualificar o trabalho dos historiadores, da ciência. Ou se é uma proposta que visa a desviar o foco das questões mais centrais do Brasil.”
O movimento nazista é fundado em janeiro de 1919, na cidade de Munique, na Alemanha, e tem origem com muitos ex-militares combatentes da 1ª Guerra Mundial frustrados com a derrota da Alemanha. “Na década de 20, esse movimento tem um crescimento principalmente com um discurso e ação de rua combatendo justamente a esquerda alemã, que era muito forte – com dois grandes partidos que possuíam milhões de apoiadores (mais de 11 milhões de votos): o SPD (Partido Social-Democrata) da Alemanha e o Partido Comunista”, afirma o professor.
O que pode ter provocado a confusão de que o nazismo se associa com comunismo e socialismo, de acordo com Andrade, “é o fato de que o partido tem o nome ‘nacional socialismo’, que não é uma identificação com o socialismo, mas um subterfúgio para enganar os trabalhadores do real intuito do partido nazista: combater o movimento operário”.
O historiador aponta que “o partido nazista não teve o maior apoio popular da época”. Nas eleições próximas à chegada de Hitler ao poder, em 1932, o partido nazista chega a conseguir 11 milhões de votos, enquanto o Partido Comunista e o Partido Socialista alemães conseguiram, juntos, 13 milhões e 200 mil votos. “É até famosa uma posição do Trótski clamando que os comunistas e socialistas se unissem porque teriam mais força para derrotar o nazismo.” Diferentemente, poucos conhecem sobre a perseguição nazista contra movimentos de esquerda: “Milhares de militantes do partido socialista e comunista também foram mutilados nos campos de concentração. Não há nenhuma identidade entre as duas posições”.
Andrade destaca a tentativa dos setores liberais de desvincularem os empresários e o capitalismo alemão do nazismo, o que considera “uma grande imprecisão, pois o movimento nazista teve financiamento dos empresários alemães. O período nazista no governo foi um período de prosperidade do capitalismo alemão”.
Por fim, o especialista explica que a história é uma ciência com 200 anos de trabalho. O trabalho do historiador é baseado em documentação – não só escritos, mas fotografias, declarações, imagens. Esse material é interpretado pelo historiador com técnicas nas mais diversas plataformas. E com debate de outros historiadores e interpretações. “Não é uma opinião sobre determinado assunto. É um conhecimento científico construído através da comprovação documental e confrontação com outras opiniões (historiografia)”, enfatiza Andrade.