Guerra na Ucrânia:
“O pior está por vir”

Enquanto mais de milhão de ucranianos
já deixaram o país, Putin diz que “vai até o fim”

Criança em campo para refugiados temporários em Przemyśl, na Polônia - Foto: Reprodução/Vaticano News

 04/03/2022 – Publicado há 2 anos     Atualizado: 07/03/2022 as 15:04

Crianças, crianças, muitas crianças. Algumas escolhendo ursinhos, bonecas, jogos, brinquedos caridosamente oferecidos em cestos espalhados à sua volta. Algumas bebendo um copo de leite, sorvendo uma mamadeira, mordendo um sanduíche. Todas bem agasalhadas, gorrinhos na cabeça, um olhar inocente, curioso, dirigido às câmaras, certamente sem compreender o que se passava em volta. Acompanhadas por mães e avós, já que os pais não podiam acompanhá-las, obrigados, por decreto ou vontade própria, a enfrentar a invasão russa de sua Ucrânia. Recepcionadas pela solidariedade dos vizinhos de seu país, que assim como os ucranianos vivenciam a experiência histórica de terem sido parte do Império Russo, da União Soviética ou simples vizinhos desta Rússia, cujo comandante, Putin, não esconde sua nostalgia do passado imperial de seu país e quer, declaradamente, reconstruí-lo.

Imagens que chocam, comovem, mobilizam um sentimento de solidariedade em torno do mais de milhão de ucranianos que já deixaram seu país natal em busca de abrigo seguro. Captadas em todo o mundo, provavelmente não em países simpatizantes da Rússia, mostram famílias precariamente refugiadas nas garagens de seus prédios, com móveis e colchões que retiraram de seus apartamentos, estações de metrô repletas de pessoas deitadas pelo chão, estações de trem lotadas por ucranianos que esperam trens que os levem para algum lugar, de preferência perto de alguma fronteira. Mais dramáticas ainda são as imagens que mostram jovens tentando obstaculizar o caminho de tanques e carros de combate russos. Lembram as dos civis húngaros e tchecoslovacos rebelados resistindo às invasões pela União Soviética nas décadas de 50 e 60 do século passado. Com a diferença que são instantâneas, imediatas, assim como as de enormes grupos de ucranianos com bandeiras azul e amarelas postando-se nas estradas para impedir o avanço de comboios russos. Conseguiriam?

Crianças e bebês refugiados em um porão em Kiev - Foto: Mvs.gov.ua/CC 4.0

Guerra pela internet

As transmissões diretas das guerras foram dificultadas depois do conflito do Vietnã, quando o sangrento noticiário de TV apresentado às famílias norte-americanas na hora de seu jantar criou o clima que minou o governo Johnson e acelerou a debacle do exército norte-americano diante dos vietnamitas. Mas nestes tempos globais de internet, mídias sociais, smartphones e satélites, que fortaleceram e reinventaram os tradicionais rádio e TV e transcenderam a mídia impressa, a informação ganhou sete vidas, para o bem e para o mal. A guerra se desenrola dramática e quase instantaneamente diante de nossos olhos. Os chefes de Estado ou de governo fazem diplomacia, ameaças ou prestam contas à sua sociedade a intervalos cada vez mais curtos para manter vivo o apoio às suas decisões. É a guerra via comunicação, que universaliza os fronts dos combates.

Ninguém melhor que o presidente da Ucrânia, o ator Volodymyr Zelensky, utiliza a gama de possibilidades oferecida por essa parafernália tecnológica. Depois de vencer as eleições locais por cerca de 70% dos votos, graças ao descrédito acumulado pelos políticos tradicionais e aos embates que devoravam a sociedade, sua popularidade desabava, consumida pelos problemas do país, até que… Putin invadiu o país. Como um personagem shakespeariano, usando todo o seu talento de ator e capacidade de comunicação, Zelensky tornou-se o líder inconteste da população ucraniana e enorme respeito internacional ao liderar a resistência militar e popular à invasão russa. Ainda não na Otan, mas Zelensky já pediu a aceitação de seu país na União Europeia, que alavancou a economia de todos os países da ex-União Soviética que já tiveram acesso ao organismo.

Estação de metrô de Kiev, convertida em abrigo antiaéreo após a invasão russa da Ucrânia - Foto: KMR/Gov/AU/CC 4.0

Do seu lado, Putin mantinha-se ao longo da semana na sua rota de derrotar, desarmar e neutralizar a Ucrânia, mantendo as ameaças de lançar mão de seu arsenal nuclear e recrudescendo os ataques militares em inúmeras regiões e cidades importantes, especialmente nas cercanias do litoral que dá acesso aos mares de Azov e Negro. Seu país está sofrendo sanções econômicas duríssimas, inéditas contra um país das dimensões da Rússia, que envolvem o sistema internacional de pagamentos SWIFT, o seu banco central, que teve bloqueadas metade dos mais de US$ 600 bilhões em reservas que acumulara em anos recentes, e fortunas e propriedades dos oligarcas russos seus aliados que exibem sua riqueza mundo afora. São sanções cujos efeitos não são imediatos, mas devem fragilizar a situação econômica do país, dos apoiadores de Putin, e a população, pois 80 importantes empresas multinacionais anunciaram a saída do país, inclusive de serviços como cartões de crédito, entre outros, que foram encerrados. Nem por isso Putin mudou uma palavra de seu discurso.

A pressão do Ocidente

Os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da França, Emmanuel Macron e o primeiro-ministro, Boris Johnson, do Reino Unidos mantém em fogo alto a pressão contra a Rússia. Impossibilitados legalmente de agir via a Otan, os membros da aliança reforçam o arsenal militar dos países próximos da Rússia como a Polônia, Lituânia, Letônia, Estônia e, certamente, fazem chegar armamentos aos militares ucranianos via caminhos evidentemente não revelados.

+ Mais

Transição energética europeia necessitará de gás natural

Guerra na Ucrânia


A guerra ocupou os dez minutos iniciais do discurso sobre o Estado da União feito pelo presidente Biden na última terça-feira, o primeiro de seu mandato, fortemente aplaudidos por democratas e republicanos. É importante lembrar que Biden enfrentará eleições parlamentares este ano e registra uma popularidade muito baixa nas pesquisas, no momento, influenciada, entre outras coisas, pela recente e desastrada retirada dos militares norte-americanos do Afeganistão.

Macron, em conversa telefônica com Putin, ouviu-o dizer “que vai até o fim” e que “o pior ainda está por vir” e respondeu que ele estava cometendo “um grande erro”. Macron é candidato a um segundo mandato presidencial nas eleições francesas agora em abril e se empenha em se distinguir como o porta voz da Europa junto a Putin.

Já o primeiro-ministro Boris Johnson também desenvolve pressões, tentando fazer os britânicos esquecerem as festas em que participou durantes as medidas sanitárias implantadas em seu país durante a pandemia. Até o presidente Jair Bolsonaro, que, alegando neutralidade, não critica as ações russas, foi alvo de telefonema de Johnson para convencê-lo a mudar de posição.

Enquanto Putin prometia que “vai até o fim” e que “o pior está por vir” as conversas de paz entre ucranianos e russos não iam além de estabelecer corredores de segurança para a saída da população do país, sinal de que o conflito vai continuar no solo da Ucrânia, cuja imagem mais forte foi o ataque à usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa, que tomou o centro do noticiário na última sexta-feira.

"Ainda vivemos em um mundo com instituições da época da Guerra Fria"

Enquanto acompanha os desdobramentos do conflito, o mundo se pergunta, perplexo, o que está por vir

Vladimir Putin - Arte sobre foto reprodução Metropole

Com o desdobramento do conflito entre Rússia e Ucrânia, o que deve ocorrer no tabuleiro geopolítico internacional? O que deve mudar nas relações entre os países? Para responder a essas questões, conversamos com os professores Paulo Borba Casella, da Faculdade de Direito, Angelo de Oliveira Segrillo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e Lenina Pomeranz, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, todos da USP.

Paulo Borba Casella

Faculdade de Direito e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Brics (Gebrics) da USP

Para Paulo Borba Casella, a guerra representa um agravamento da tensão que vinha há algum tempo entre a Rússia e as potências ocidentais. “Não esqueçamos que isso se põem numa sequência de atos de agressão que foram feitos contra a Geórgia em 2008, contra a própria Ucrânia em 2014, quando foi anexada a Criméia e começou a invasão das regiões do leste da Ucrânia, Donetsk, Luhansk , até agora com a ficção de que não era o exército russo e foram os chamados ‘homenzinhos verdes’. Ou seja, eram soldados russos, mas que, segundo o discurso do governo de Moscou, estavam lá lutando na Ucrânia por conta própria.”

Casella lembra que, em 2015, a Rússia fez uma intervenção militar na Síria. “Essa ficção agora, já ficou para trás, havia já uma série de sanções que tinham sido adotadas pelas anexações e invasões de 2014, e agora isso foi desencadeado numa escala muito maior territorialmente e militarmente e, sobretudo, como um drama humano.”

Estamos vendo uma invasão num país livre e sem provocação com a destruição de vidas, de infraestrutura de patrimônio histórico, danos a recursos naturais. Além da destruição física dos prédios e monumentos, há também o sofrimento da população que tem que deixar suas casas, suas vidas. Casella lembra que tanto a resistência do povo ucraniano e quanto a resposta do Ocidente “mostra um agravamento das tensões e das divisões no cenário geopolítico mundial”.

Nesse cenário, qual será o destino do Brics – bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul -, criado como fonte de financiamento de projetos em áreas como infraestrutura e desenvolvimento fora dos principais mercados financeiros do mundo.

“A necessidade de atuação conjunta e de coordenação do bloco fica prejudicada pela atitude da Rússia. China e Índia têm sido mais solidárias, se abstiveram na votação da resolução da Assembleia Geral. O Brasil votou contra. O cenário se complica, haverá perdas econômicas para todos, haverá aumento de preços de combustíveis e alimentos e é um mundo mais tenso, mais frágil e com mais motivos de preocupação para todos nós”.

Ouça a íntegra da opinião do professor Paulo Borba Casella.

Logo da Rádio USP

Angelo de Oliveira Segrillo

Professor de História Contemporânea no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador Laboratório de Estudos da Ásia

O professor Angelo Segrillo fala que o conflito não é uma mera disputa entre os dois países.  “A Rússia coloca a questão da Otan – Organização do Tratado do Atlântico Norte – e não aceita a expansão da organização e as possíveis mudanças geopolíticas”.

Segrillo comenta que o mundo vive numa era pós-Guerra Fria, com instrumentos criados nessa época. “Quando acabou a Segunda Guerra Mundial foram criados uma série de instituições, como o sistema de Bretton Woods e Organização das Nações Unidas (ONU), que serviram bem de uma certa maneira durante a época da Guerra Fria, quando havia um mundo dividido em dois campos. Era um mundo bipolar: um campo capitaneado pelos EUA e outro pela União Soviética. De repente essa Guerra Fria acaba, esse mundo bipolar acaba, passamos a viver num mundo que alguns chamam de unipolar, mas vivendo sobre as mesmas instituições; a ONU, muitas das instituições de Bretton Woods continuam até hoje.

Segrillo comenta que antigamente as guerras eram entre os Estados, apenas. Atualmente temos instituições organizadas promovendo conflitos, como o AL-Qaeda e o Estado Islâmico. “São novas formas de conflito, e também estamos vivendo uma época da transição hegemônica, um declínio dos EUA na área econômica e a subida China que, provavelmente, vai se tornar a maior economia do mundo.”

Ouça a íntegra da opinião do professor Angelo Segrillo.

Logo da Rádio USP

Vicente Ferraro Júnior

Pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

“Os recentes posicionamentos russos, liderados por Putin, já preocupavam há alguns anos. Há uma crítica muito grande em relação às políticas que Vladimir Putin implementou, sobretudo aquelas dentro da própria Rússia, da construção gradual de um regime autoritário, algo que, em primeiro lugar, impactou a vida diretamente dos próprios russos. Como a gente pode ver, ao longo dos últimos anos, o regime vem endurecendo, há a perseguição de acadêmicos, jornalistas, opositores e de diversas vozes dissidentes dentro da Rússia. Esse próprio conflito, ao que tudo indica, pode servir como um pretexto para que o regime venha a endurecer ainda mais”, comenta o pesquisador.

Ferraro Júnior entende que o conflito possui diversas motivações, mas enxerga cinco como fundamentais: “A questão da Otan, em primeiro lugar, de fato, é algo que a diplomacia russa desde os anos 1990 vem contestando, a expansão da Otan. O Pacto de Varsóvia foi extinto quando acabou a União Soviética e a Otan continuou a existir, intensificou suas operações e veio a se expandir no Leste Europeu, em áreas que antes eram de influência russa. Em 1999, houve a intervenção da Otan em Kosovo, foi um dos primeiros atritos entre a Rússia e o Ocidente no período pós-Guerra Fria, então isso é algo antigo. Mas a reivindicação de entrar na Otan também é uma demanda antiga da Ucrânia.”

O segundo fator mencionado pelo pesquisador foi “a questão de como o conflito tem um impacto na política doméstica de Vladimir Putin, tem um impacto dentro da própria Rússia, do discurso que a Rússia está cercada de inimigos, de inimigos que querem isolá-la, querem sufocá-la, o discurso da russofobia. Isso acaba reforçando a popularidade de Vladimir Putin. A partir do momento que o Ocidente, agora, vem implementando uma série de sanções, algumas radicais, que atingem até eventos esportivos, questões culturais da Rússia, isso pode ter efeito contrário do que o próprio Ocidente almeja, a partir do momento que reforça a narrativa de Vladimir Putin de que a Rússia está cercada de inimigos.”

Outras motivações citadas por Ferraro Júnior foram o questionamento de Putin acerca da legitimidade da existência da Ucrânia como Estado soberano independente e a contestação à hegemonia russa no chamado espaço pós-soviético. Além disso, ele atesta que “o quinto elemento é essa questão da Ucrânia, que começa em 2014. A sociedade ucraniana no período pós-soviético teve uma macrodivisão entre oeste pró-Ocidente, e o leste pró-Rússia e isso gerou uma polarização política, que chegou ao ápice em 2014.”

Existe também um questionamento acerca da diplomacia internacional e até que ponto o poder diplomático pode minimizar os impactos da guerra. Desse modo, a China é vista como possível mediadora. “Ela está preocupada com o conflito, está preocupada com o impacto econômico que esse conflito possa ter. Vale destacar que o preço das commodities energéticas está subindo consideravelmente no mercado internacional”, explica o pesquisador, que completa ao dizer que “a China não compactua com as intervenções militares de grandes potências em países emergentes. Há também uma sinalização de que a China está disposta a minimizar a polarização política nos últimos anos.”

Lenina Pomeranz

Faculdade de Economia Administração e Contabilidade, especialista em economia internacional com ênfase em Rússia

“A situação atual no tabuleiro geopolítico internacional não pode ser vista independentemente da guerra desencadeada pela Rússia na Ucrânia, tampouco pela posição adotada pela República da China, mais afastada dessa guerra. Isso se situa no quadro da declaração conjunta feita por ambos os países no dia 7 de fevereiro, propondo uma refundação da ordem mundial estabelecida depois da Segunda Guerra Mundial, como lembra o professor José Luiz Fiori, em texto publicado no periódico Outras Palavras, em 18 de fevereiro. Dito de outra forma, a situação atual mantém Rússia e República da China como pivôs, mesmo que taticamente o modo de participação de cada um desses países nesse tabuleiro leve em conta os seus interesses estratégicos em horizontes temporais distintos”, comenta a professora.

Zelensky – ou a jornada do herói improvável

O ex-comediante que se tornou presidente da Ucrânia vai às ruas, confronta os russos – e se torna a principal referência para a população em tempos de guerra

Zelensky assina oficialmente pedido de entrada de seu país na União Europeia - Foto: Reprodução/Presidência da Ucrânia

No momento em que este texto está sendo escrito, a Ucrânia está em chamas. Um milhão de pessoas já deixaram o país, cidades caem, outras resistem, no andar lento das tropas e tanques russos. Soldados morrem dos dois lados – dependendo da narrativa, mais de um lado do que do outro – mas são números, estatísticas. O pêndulo da guerra, descontrolado, balança muitas vezes ao bel prazer de quem se antecipa para contar a história. O que dói é que pessoas morrem de um lado e do outro. Talvez haja milicianos chechenos, uma espécie de esquadrão da morte redundante vagando pelos campos ucranianos, em busca de uma pessoa, só uma: Volodymyr Zelensky, o comediante e ator que se tornou presidente da Ucrânia e que, em meio à guerra na qual foi engolfado, resiste. Resiste como um herói improvável.

Porque Zelensky talvez seja o personagem mais improvável de uma guerra que Vladimir Putin, o czar todo poderoso do Kremlin, quis chamar de sua. Uma guerra, por vários aspectos se não improvável, com certeza desnecessária. Mas essas são questões geopolíticas e econômicas. Deixemos a análise mais precisa dessa situação para os especialistas que, em maior ou menor grau, tentam deslindar os caminhos sempre espinhosos da terra de ninguém que é uma guerra. Analistas que passam 24 horas no ar – quase tendo como fundo musical Nessun dorma, de Puccini – refletindo ao sabor dos acontecimentos mais momentosos: a bomba que atingiu uma usina nuclear, soldados que se entregam, soldados que não se entregam, uma população que resiste a tropas teoricamente muito mais bem preparadas.

Declarações do presidente Lula apontam para uma nova postura de política internacional defendida pelo atual poder executivo - Foto: Kyivcity.gov.ua / CC 4.0

Mas em meio a nuvens de fumaça e fogo, recendendo a pólvora, há a figura de Zelensky. Talvez ele não devesse estar no olho do furacão. Porque ele era improvável. Zelensky, o comediante que dublou o urso Paddington para o cinema ucraniano, que protagonizou uma dúzia de comédias sem graça e que estreou uma série de sucesso: justamente aquela em que ele interpreta um professor de história que vai parar na presidência da Ucrânia. A vida imita a arte – ou vice-versa? Vai saber. O fato é que Zelensky ficou famoso por seu papel em Servidor do povo – a tal série, falada, ironicamente, em russo –, levou seu carisma para a vida real, se candidatou como anti-establishment… e foi eleito, se tornando talvez um dos chefes de estado mais inverossímeis desses tempos estranhos.

Putin acreditou que seria fácil dobrar o dublê de comediante e presidente. Mas não contava com uma coisa: que Zelensky – tíbio como presidente em tempos de paz, chamado por uma jornalista de seu país de “medíocre até o ponto mais desmoralizante” – se tornaria um símbolo da resistência ucraniana e empreenderia sua jornada do herói bem particular.

“Os países novos têm fome de heróis com que decorem a sua história recente e, por isso, quando não os têm, inventam-nos. A história da humanidade está cheia de heróis duvidosos. Na urgência de os terem, os novos países acabam, por vezes, por mandar para um panteão qualquer o mais improvável dos heróis, com o mais indecente dos currículos”, escreveu no ano passado o articulista português Eugénio Lisboa. Não, não era sobre a Ucrânia nem sobre Zelensky que ele fez essa consideração. Mas bem poderia ser.

Na capital Kiev, um dos alvos foi uma torre de TV - Foto: Wikimedia Commons

A Ucrânia – destarte sua história milenar – é um país novo, com pouco mais de três décadas de independência. Carece de heróis. O currículo político de Zelensky, até o dia 24 de fevereiro, era, no mínimo, questionável. Mas diante das improbabilidades, o presidente ucraniano se superou. E, como foi dito lá em cima, empreendeu sua jornada particular do herói. Não exatamente aquela conceituada pelo antropólogo Joseph Campbell, mas que contém alguns de seus elementos.

Afinal, como já se afirmou várias vezes, o que se precisa ter em mente é que a jornada do herói não é literal, mas sim carregada de simbolismos – e nem precisa gabaritar os doze tópicos elencados por Campbell para seguir a jornada. Por isso, na história recente de Zelensky estão lá elementos como o “mundo comum”, o “chamado da aventura” (quando um problema se apresenta ao “herói”), a reticência em aceitar o chamado, e “provações, aliados e inimigos”. Isso, para ficarmos só em alguns. E uma ressalva: nem todo herói terminará sua jornada.

Zelensky é um herói, então? Não necessariamente. Ou não ainda. Mas ele tem sabido como poucos exercer um papel que ninguém esperava dele. Sua trajetória nos últimos dias está eivada de simbolismos – e isso faz toda a diferença.

Guerra real – e virtual

Em uma guerra travada em campos de batalha e em cidades, mas também nas redes sociais e na mídia, a narrativa impera. E a semiótica também. E Zelensky, ser midiático por natureza, tem sabido usar dessas armas que vão bem distantes das bombas de fragmentação. Enquanto Putin aparece sistematicamente engravatado e em algum salão do Kremlin, destilando seu humor de ex-agente da KGB, o presidente ucraniano está nas ruas ou em saletas pouco arejadas vestindo uma camiseta verde-oliva, militar, mostrando sua imagem ao mesmo tempo jovial (ele tem 44 anos), determinada e, por que não?, “heroica”. Toda boa história precisa de um protagonista e de um vilão, de um antagonista. A Guerra da Ucrânia já elegeu os seus.

Um dos maiores simbolismos foi sua aparição, em TVs mundo afora, diante do prédio do governo, em Kiev. Naquele momento, muitos imaginavam que Volodymyr Zelensky teria fugido do país. Não. Ele aparece, rechaça a oferta dos Estados Unidos de ajuda para sair da Ucrânia e emenda: “Não preciso de carona, preciso de munições”. O dramaturgo francês Jean Giraudoux (1882-1944), pacifista, ex-combatente na Primeira Guerra Mundial, escreveu nos anos 1930 uma peça chamada La Guerre de Troie n’aura pas lieu (A Guerra de Tróia não ocorrerá). Em dado momento da peça, afirma-se: “O Homem em tempo de guerra chama-se herói. Pode não ser o mais corajoso e fugir apressadamente. Mas, ao menos, é um herói que bate em retirada.” Zelensky é um herói que não foge.

TV da Ucrânia ensina a fazer coquetel molotov, uma arma feita com combustíveis, como álcool e gasolina e garrafa de vidro- Foto: Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0

As atitudes de Zelensky fazem, na verdade, eco com as de muitos ucranianos, que lutam contra os russos com as armas que têm. Uns, como uma simpática e enfática senhora, oferecem sementes de girassol para soldados russos. Por quê? Para que as flores possam crescer quando os soldados morrerem. Outros, soldados ousados, tripudiam e xingam invasores russos, mesmo quando a morte parece iminente. Outros ainda, em uma espécie de broma guerrilheira, trocam as placas de trânsito nas cidades invadidas e indicam, em vez de ruas ou bairros, lugares bem pouco aprazíveis ou recomendáveis. “E enrolado nessa bandeira de resistência está o próprio Zelensky. Nenhum homem havia passado de ser considerado uma piada para converter-se em uma lenda tão rapidamente”, escreveu há alguns dias o jornalista Michael Idov, ex-redator-chefe da revista GQ Russia.

E essa lenda – como as lendas em tempos virtuais e tecnológicos – se apresenta de várias maneiras. Seja no papel de memes sem-fim, nos quais o presidente aparece como um “Capitão Ucrânia” em imagens trabalhadas no photoshop, seja em uma eleição virtual para discutir quem vai viver seu papel no cinema – sim, já se discute isso, alguém duvida? Hollywood não está aí para perder uma boa história. Ah, sim: o vencedor foi Jeremy Renner, o “Gavião-Arqueiro” de Os Vingadores – e o ator se tornou trending topic no Twitter. Também um vídeo em que Zelensky, ao lado de alguns membros do seu governo, aparece andando pelas ruas escuras de Kiev e afirmando que “ali seguirão” viralizou em todo o mundo.

Talvez a melhor definição do papel de Volodymyr Zelensky nessa guerra tenha sido dada pelo jornalista Idov: “estamos convertendo em ídolo pop um homem que pode estar a ponto de morrer, quase que em uma transmissão ao vivo. Estamos lançando homenagens para protegernos de uma verdade assustadora: que Zelensky não é um super-herói, nem é um meme, nem a encarnação de nossas fantasias de vingança contra Putin. Ele é, simplesmente, uma pessoa que tem estado à altura das circunstâncias. A única coisa que podemos fazer é observar o que ele vai fazer. Afinal, quando há um chamado para cumprir um dever tão inconcebível, deve-se responder da mesma maneira.”


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.