Educadora e ativista da Maré é nova titular de Cátedra no IEA

Para a diretora do Redes da Maré, manifestações artísticas e culturais devem ser levadas para a Universidade

 27/03/2018 - Publicado há 6 anos

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A educadora e ativista social Eliana Sousa Silva é a nova titular da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, cátedra que é resultado de parceria do Instituto de Estudos Avançados (IEA) e o Itaú Cultural. Eliana é diretora e fundadora da ONG Redes da Maré, no Rio de Janeiro, e autora do livro Testemunhos da Maré, publicado em 2012. Ela também lidera investigação crítica sobre a violência no Rio de Janeiro. É a primeira mulher na vaga, com a missão de trazer para a Universidade a discussão sobre a cultura num campo expandido.

Na última edição do Jornal da USP no Ar, Roxané Ré entrevistou Eliana Sousa Silva, que falou sobre os desafios de assumir a Cátedra e apresentou o projeto Redes da Maré, do qual Marielle Franco foi aluna.

Para conferir a entrevista editada, leia abaixo. Ou se preferir ouvir o programa na íntegra, clique no player acima.

 

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Foto: Leonor Calasans via Instituto de Estudos Avançados

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Roxane Ré: Falando no papel da cultura como agente de mediação e transformação social, você tem muita experiência nisso e presencia o poder e a força desse trabalho junto à comunidade. Gostaria que você falasse um pouco sobre como será esse desafio, de trazer esse tema da prática para a reflexão dentro da Cátedra Olavo Setúbal?

Eliana Sousa Silva: Primeiro tem essa questão da própria Universidade se colocar aberta no sentido de estar dialogando e refletindo sobre dinâmicas sociais no campo da arte e da cultura. E, no caso desse papel de “fazer a mediação”, tem esse sentido positivo de tentar colocar o enfoque em algo que eu acho que é extremamente necessário no momento em que nós estamos vivendo no Brasil, de reconhecer as potências que as periferias e favelas do Brasil têm.

Existe uma produção muito significativa no campo da arte e da cultura. A gente precisa entender que isso tem um valor e uma potência que a Universidade está perdendo por não estar dialogando e contribuindo com esse processo, trazendo essa população e essas manifestações artísticas e culturais para dentro da Universidade.

Roxane Ré: A associação foi formalizada em 2007, com o nome Redes da Maré. E o objetivo era justamente consolidar essa ampla rede de parceria para o desenvolvimento sustentável naquela comunidade. Queria que você falasse um pouco dessa experiência ao longo desses anos.

Eliana Sousa Silva: O Redes da Maré é um movimento que já tem 20 anos como proposta. A Maré é um conjunto de favelas do Rio de Janeiro, com 16 favelas distintas, que a Prefeitura nomeou “Maré”. Então, tem uma coisa importante que eu sempre enfatizo: na verdade, são “Marés”, porque tem todo um processo histórico de construção que vem desde a década de 40 e cada uma dessas 16 favelas tem uma maneira de estar ali naquele espaço.

Redes da Maré tem essa característica de ter sido uma instituição que foi forjada no processo de lutas comunitárias, como é o meu caso, eu cresci numa dessas favelas, que é a Nova Holanda, vim na década de 70, diretamente da Paraíba para a Maré, e era uma região sem infraestrutura nenhuma até a década de 80.

A Redes da Maré fez esse processo histórico no qual meus pais e outros moradores lutaram para permanecer naquele espaço e adquirir direitos muito básicos, como água, esgoto e eletricidade. A partir daí, tem todo um processo de mudanças que vai acontecendo, e na década de 90 tem algo que foi bem relevante para o nosso trabalho, que foi uma pesquisa sobre a escolaridade da população da Maré, onde na época a gente identificou que menos de 0,5% da população tinha chegado à Universidade. A partir disso, a gente usou esse dado concreto para entender como o elemento da desigualdade se expressava na realidade da Maré. Na realidade, nós, que fazíamos parte dessa pesquisa, é que éramos parte desses menos de 0,5%.

Então, Redes da Maré nasce desse processo de tentar entender como a desigualdade se expressa nas favelas da Maré, um lugar que possui 40 mil pessoas, maior que 96,4% das cidades brasileiras. Esse é um conceito importante para entender a importância da Maré, as demandas estruturais da Maré. E é uma organização que nasce com essa característica, a de ter sido criada por moradores da própria Maré que chegaram à Universidade. O que a gente almeja e deseja é contribuir nesse processo de criar algo estruturante, que, de fato, mexa na configuração visual que nós temos ali.

Hoje, a gente trabalha basicamente a partir de cinco áreas temáticas, as quais a gente acredita que, se a médio ou longo prazo a gente conseguir impactar essas áreas, a vida do morador concretamente muda. A Educação, que tem a ver com toda essa ideia de impactar na política pública, melhorar a educação; Arte e Cultura, temos uma ideia de trabalhar o acesso à arte e à cultura. No Rio de Janeiro, a zona sul é a área rica  e os equipamentos de cultura estão todos escalados nessa região, então tem a questão base de trazer o acesso, mas também tentar uma produção de arte e cultura. Temos um espaço chamado “o canto de arte da maré”; a outra dimensão é o Desenvolvimento Territorial, buscando avanço na questão ambiental e habitacional; Comunicação, a gente tem um jornal, que é o Maré de Notícias, um jornal mensal com 50 mil exemplares distribuído porta a porta dos 47 mil domicílios da Maré; e a Segurança Pública, que é um tema que não tinha como a gente não trabalhar, em função de que foi constatado nesse trabalho, de que segurança pública é um direito que precisa ser construído. Ele não existe nas favelas do Rio de Janeiro. Então, precisa ter um foco nesse sentido.

Roxane Ré: Esse desafio, ainda mais agora, com essa tomada de decisão pela intervenção federal na área de segurança e o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco, que inclusive passou pelo pré-vestibular comunitário e tornou-se ativista, conseguiu avançar através da educação. Acho importante a gente citar isso, Eliana.

Eliana Sousa Silva: Marielle foi da segunda turma do pré-vestibular que nós organizamos a partir dessa pesquisa, em 1996, e,  de fato, ela foi uma pessoa que foi forjada nesse processo de tentar contribuir com uma ideia de autonomia dos moradores. Ela escolheu esse caminho a partir das lutas que ela acreditava, a partir da origem dela. Ainda é algo muito recente e é difícil até para mim falar sobre isso.

Roxane Ré: Eu imagino. Ela foi brutalmente assassinada, só que deixa uma mensagem que vai se tentar superar que é o medo. O medo que se tenta impor nas pessoas, no dia a dia das pessoas, da possibilidade de crescer e avançar através disso tudo que estamos falando. Agora é superar o medo e seguir nesse caminho.

Eliana Sousa Silva: A gente torce muito para que isso seja esclarecido. Fica difícil não ter isso esclarecido.

Roxane Ré: Eu acho que a gente tocou em alguns pontos, mas há muito o que ser feito para expandir a educação e a arte, fornecer esse encontro com a sociedade. Eu acho que a Universidade tem a missão de discutir e incentivar políticas públicas, fazer essa ponte, não é, Eliana?
Eliana Sousa Silva: Com certeza, existe o desafio de tentar trazer essa discussão, essa reflexão, de como aproximar a produção da Universidade, que está muito distante das demandas reais da sociedade e, principalmente, desse segmento das populações empobrecidas. Então, tem um desafio, no meu entendimento, que é justamente entender a periferia de São Paulo e a do Rio de Janeiro, são periferias diferentes. Para mim, vai ser um aprendizado estar aqui e poder me aproximar dessa realidade que tem aqui em São Paulo. A coisa que mais me estimula a estar aqui e poder contribuir com essa experiência do Rio de Janeiro é poder ser de alguma ponte para criar uma mediação, algo que é possível. Eu trabalhei na UFRJ e lá a gente tentou criar essa aproximação entre a Universidade e a sociedade a partir de um projeto muito concreto, nessa perspectiva de produzir conhecimento e criar uma incidência de fato na vida das pessoas. Acredito muito que a gente possa plantar uma semente e que isso de alguma maneira seja algo que a Universidade começa a compreender como algo estratégico e fundamental nos dias de hoje.

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Jornal da USP, uma parceria do Instituto de Estudos Avançados, Faculdade de Medicina e Rádio USP, busca aprofundar temas nacionais e internacionais de maior repercussão e é veiculado de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 9h30, com apresentação de Roxane Ré.

Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo no celular. Você pode ouvir a entrevista completa no player acima.

 

 


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