Avaliar testemunhos sobre ditadura é fundamental para memória

Janaína Teles questiona como torturador e torturado podem agir em conluio, segundo interpreta o STF na Lei da Anistia

 27/08/2019 - Publicado há 5 anos
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O seminário internacional Os 40 anos da Anistia e o Legado das Ditaduras na América Latina busca uma avaliação crítica das políticas de reparação e memória e dos mecanismos legais adotados em países que, como o Brasil, passaram por regimes repressivos. Decorridos 40 anos da Lei da Anistia, permanecem muitos pontos de interrogação em relação ao conhecimento histórico sobre o regime autoritário brasileiro. Existem importantes lacunas nas articulações entre o passado e o presente. Seja pela censura, pelo caráter da Lei da Anistia, ou pela dificuldade para se instaurar uma comissão da verdade no País. Um debate sobre o passado autoritário latino-americano é necessário para além da Universidade. É uma demanda da sociedade.

Assim defendem os organizadores do evento. “Contaremos não só com especialistas de humanidades, mas também militantes que viveram essa história. E, por meio do testemunho dessas pessoas, analisar, avaliar e refletir sobre os regimes ditatoriais do Chile, Argentina e Brasil”, aponta Janaína Teles, doutora em História Social pela USP, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) e membro do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), uma das organizadoras do seminário. “O evento é aberto, e é uma missão da academia aproximar as pessoas desse debate”, diz.

A lei nº 6.683, popularmente conhecida como Lei da Anistia, foi promulgada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente militar João Batista Figueiredo. Os políticos da época prometiam uma anistia ampla, geral e irrestrita. Em 2010, o jurista Fábio Konder Comparato, representando a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) defender uma releitura do texto proposto na ditadura. Comparato argumentou que a posição, aprovada por um parlamento submisso no decorrer de um regime militar, vai contra a Constituição instituída em 1988, já que fere seus princípios básicos. Esse era o fundamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153.

A Lei da Anistia de Figueiredo tem uma redação vaga no seu primeiro e mais importante artigo. “Primeiro, a legislação fala de uma relação recíproca entre as partes, como se houvesse dois lados em uma situação de paridade, o que é uma simplificação impossível dos conflitos. E, depois, considera os abusos dos militares como crimes conexos às contravenções políticas”, aponta Janaína. Isto é, os assassinatos, as torturas e os estupros, cometidos por agentes do Estado, seriam desdobramentos das ações dos militantes de esquerda. “Quando se rouba um banco e depois se furta um carro para a fuga, se tem um crime conexo. O interesse é o mesmo nas duas iniciativas. Como você pode dizer que o torturador agiu em conluio com o torturado?”, questiona a pesquisadora.

O STF, em 2010, decidiu pela validade da anistia como foi promulgada. “Escolheram ignorar os fatos. Defenderam que foi firmado um acordo político em 79, que deve ser respeitado pelos tribunais. Isso não é jurídico” afirma a historiadora. O Brasil, desde então, foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) – uma no caso Vladimir Herzog e outra no caso Gomes Lund e outros, relativo à Guerrilha do Araguaia. “A vereadora Luiza Erundina tem um projeto de lei que propõe uma redação mais clara do primeiro artigo da lei nº 6.683. Seria um avanço muito importante em tempos de negação, quando o presidente da República propõe a comemoração do golpe militar, como fez no fim de março”, declara.

O evento começou nesta segunda-feira (26) e vai até quarta-feira (28), o aniversário da Anistia. Às 18h30 deste dia 27, Fabiana Rousseaux (Argentina), Macarena Gelman (Uruguai) e Cath Collins (Chile) se unem a Janaína para debater As Disputas pelas Memórias da Ditadura na América Latina, para além do cenário brasileiro. “Fabiana é uma psicanalista que tem estudos acadêmicos e atua em órgãos governamentais. Ela presta auxílio àqueles que deporão nos tribunais a respeito da ditadura argentina, algo comum por lá. Além disso, ela é filha de desaparecidos. Então, ela agrega um debate muito rico em várias perspectivas”, conta a pesquisadora. A psicanalista escreveu o livro Territorios, Escrituras y Destinos de la Memoria, apresentado no dia 26, durante o seminário.

Outras figuras importantes da disputa de narrativas fazem parte do evento, como o advogado Belisário dos Santos Júnior (ex-presidente da Comissão de Indenização à Tortura do Estado de São Paulo), o promotor Marlon Weichert (um dos responsáveis pelos casos de desrespeito aos direitos humanos na Corte IDH) e José Carlos Dias (ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade). O seminário ocorre no Centro Universitário Maria Antonia e não requer inscrição prévia. Para mais informações acesse esse site.


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