O pesquisador Francisco William da Cruz Júnior, da USP, examina um salão repleto de espeleotemas na caverna Toca da Boa Vista, na Bahia – Foto: Daniel Menin (2019)

Ao flexibilizar regras, governo abre caminho para destruição de cavernas

Novo decreto permite que empreendimentos causem “impactos negativos irreversíveis” em cavernas de “relevância máxima”, o que era proibido

 20/01/2022 - Publicado há 3 anos

Autor: Herton Escobar
Arte: Guilherme Castro/Jornal da USP

Ecossistemas subterrâneos que a natureza levou milhares de anos para esculpir na rocha poderão ser destruídos num piscar de olhos para a construção de estradas, hidrelétricas, obras de saneamento básico e outros empreendimentos considerados de “utilidade pública” — incluindo atividades de mineração —, mesmo que as formações geológicas ou as espécies que existem dentro delas sejam consideradas de “relevância máxima” para conservação. Esse poderá ser o legado — em muitos casos, irreversível — do novo decreto federal que flexibiliza as regras de proteção a cavernas no Brasil, segundo especialistas da USP e de outras instituições.

Publicado em 12 de janeiro, o novo regramento (Decreto 10.935) cria uma brecha para que mesmo cavernas classificadas como de “relevância máxima” para conservação sejam sujeitas a “impactos negativos irreversíveis”, o que não era permitido até agora. Pelo decreto anterior, que vigorava desde novembro de 2008, apenas as cavidades de relevância baixa, média e alta poderiam sofrer esse tipo de impacto, que pode envolver desde desabamentos pontuais até a morte de animais, contaminação de habitats aquáticos ou a destruição total de uma caverna.

Cientistas e ambientalistas criticaram duramente o decreto, interpretado por muitos como mais uma “boiada” passada pelo governo federal atual para pisotear as leis de proteção ambiental do País. A Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE), que representa a comunidade científica que trabalha com cavernas, classificou o decreto como “inconstitucional” e alertou que ele carrega “vários retrocessos” em relação à regulamentação vigente. 

“O Decreto Federal número 10.935/2022 foi produzido a portas fechadas, sem diálogo com a comunidade espeleológica e, claramente, mostra a interferência direta dos Ministérios de Estado de Minas e Energia e de Infraestrutura em uma matéria que é de interesse ambiental. Esta interferência visa à facilitação de licenciamento de obras e atividades potencialmente lesivas ao patrimônio espeleológico nacional e que, geralmente, estão associadas a atividades de alto impacto social”, escreveu a SBE, em uma nota pública divulgada no dia 13.

“Se tudo isso for implementado, é uma clara ameaça a essas cavernas de relevância máxima”, diz ao Jornal da USP o geólogo Francisco William da Cruz Junior, professor do Instituto de Geociências da USP e especialista em paleoclimatologia — o estudo de climas passados por meio de evidências geológicas, físicas e químicas que ficam preservadas nas cavernas. “Realmente, estamos diante de um retrocesso ambiental sem precedentes”, completa ele, destacando que as cavernas de relevância máxima eram as únicas que contavam, ainda, com alguma garantia de proteção integral.

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O novo decreto tem, inclusive, efeito retroativo, permitindo que empreendedores solicitem a revisão de processos de licenciamento já concluídos com base nas novas regras. Ou seja, projetos que não foram autorizados no passado para a proteção de alguma caverna poderão vir a ser autorizados agora, ou ter suas medidas de compensação aliviadas. Anteriormente, para causar danos irreversíveis a uma caverna de relevância alta, por exemplo, o empreendedor precisava proteger duas cavernas semelhantes em outro lugar. Agora, basta uma. 

“Estas alterações são extremamente questionáveis, e gerarão impactos enormes e irreparáveis”, afirmou, também em nota, a Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros (SBEQ), que representa os pesquisadores de morcegos — animais de grande importância ecológica e que utilizam as cavernas como seu hábitat principal de descanso e reprodução. “Literalmente, milhares de espécies que vivem em cavernas, incluindo espécies criticamente ameaçadas de extinção e espécies hiperendêmicas (com ocorrência em uma única caverna, por exemplo), estão em risco mais elevado com a publicação do Decreto 10.935.”

Caverna do Diabo, em São Paulo - Foto: Daniel Menin
Pesquisadora na caverna da Diva de Maura, na Bahia - Foto: Daniel Menin
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Em defesa do decreto, a Secretaria-Geral da Presidência da República publicou nota dizendo que o texto “aprimora a legislação de cavidades, permitindo a exploração responsável e garantindo a preservação ambiental”. “O novo texto abre caminho para investimentos em projetos estruturantes fundamentais, geradores de emprego e renda, como a construção de rodovias, ferrovias, linhas de transmissão, dentre outros, garantindo, ao mesmo tempo, a proteção de cavidades consideradas relevantes”, diz a nota do governo. O presidente Jair Bolsonaro disse no dia 19 que a mudança era necessária para “o Brasil poder crescer”, já que, segundo ele, o decreto anterior impedia a construção de estradas e outras obras de infraestrutura “no Brasil inteiro” — o que não é verdade.

Para serem autorizados, além de passarem pelo processo de licenciamento e ser considerados de utilidade pública, os empreendimentos terão de comprovar a “inexistência de alternativa técnica e locacional viável” e garantir a preservação de outra cavidade “com atributos ambientais similares àquela que sofreu o impacto”.

É uma exigência que faz pouco sentido para os especialistas, já que a condição para uma caverna ser considerada de relevância máxima é, justamente, o fato de ela conter atributos únicos, que dificilmente poderão ser replicados em outras cavidades. As formações geológicas e as informações paleoambientais e paleoclimáticas preservadas nos espeleotemas de uma caverna, por exemplo, são específicas da região e do ambiente na qual ela se formou. “Não existe medida compensatória para a destruição de uma caverna de relevância máxima”, sentencia Cruz Junior.

O mesmo pode ser dito de sítios arqueológicos e paleontológicos, que preservam vestígios de populações humanas e da biodiversidade do passado. “Em qualquer lugar do mundo, as descobertas mais relevantes da arqueologia e da paleontologia foram feitas em cavernas”, diz o arqueólogo André Strauss, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) e coordenador do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE) da USP. “No Brasil não é diferente”, completa ele. Grande parte das informações que temos sobre o povoamento da América do Sul nos últimos 12 mil anos, por exemplo, vem de sítios arqueológicos encontrados em cavernas como as de Lagoa Santa, em Minas Gerais, onde viveu o chamado Povo de Luzia, considerado o mais antigo do Brasil. “Basicamente, toda a história humana está documentada em cavernas”, diz Strauss. “Dito isso, qualquer lei que vá contra a preservação desse patrimônio é uma lei de lesa-humanidade.”

Para Strauss, “chega a ser ridículo” o discurso usado pelo governo para justificar o decreto, buscando ressuscitar um falso dilema de “conservação versus desenvolvimento”. “É uma bobagem total, dizer que não se pode fazer estradas no Brasil por causa de cavernas”, diz o arqueólogo. Ele cita a própria região de Lagoa Santa, onde trabalha, como exemplo: é uma região que abriga milhares de cavernas e, nem por isso, deixa de ter estradas, condomínios, ou mesmo empreendimentos agrícolas e de mineração — porque apenas algumas dessas cavernas, consideradas de relevância máxima, é que são integralmente protegidas.

Mundo subterrâneo

As cavernas — também chamadas de grutas, lapas, tocas, buracos e outros nomes — são cavidades subterrâneas formadas por processos naturais, como a dissolução de rochas pela ação da chuva e de lençóis freáticos, no decorrer de milhares ou até milhões de anos. Há mais 20 mil delas oficialmente mapeadas no Brasil, segundo o mais recente Anuário Estatístico do Patrimônio Espeleológico Brasileiro, produzido pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (Cecav) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio); mas pesquisadores estimam que o número “real” possa passar de 300 mil, considerando a enorme quantidade de relevos propícios à formação de cavernas que ainda não foram explorados cientificamente no País.

A Constituição Federal de 1989 define todas as “cavidades naturais subterrâneas” como bens da União.

Localização das cavernas e das regiões de carste (formações geológicas favoráveis à ocorrência de cavernas) no Brasil Fonte: Cecav/ICMBio – Anuário Estatístico 2019

As cavernas consideradas de “relevância máxima” são aquelas que apresentam alguma característica particularmente única, seja do ponto de vista geológico, biológico ou social. Por exemplo, que contêm algum tipo específico de espeleotema (formações geológicas internas, como as estalactites e estalagmites), que abrigam alguma espécie rara de troglóbio (como são chamados os animais que vivem dentro de cavernas), ou que possuem “destacada relevância histórico-cultural ou religiosa”.

Não há um registro oficial de quantas cavernas desse tipo existem no Brasil, pois a classificação só costuma ser feita por necessidade comercial, quando um empreendedor contrata uma consultoria especializada para fazer essa avaliação, dentro de um processo de licenciamento ambiental. Foi justamente para isso que a classificação foi criada em 2008, pelo Decreto 6.640 (agora revogado): estabelecer critérios para determinar quais cavernas podem ser impactadas (ou até mesmo destruídas), quais precisam ser integralmente protegidas e quais as medidas compensatórias que devem ser implementadas em caso de impacto. 

“As cavernas sempre foram vistas como uma pedra no caminho de vários setores”, diz a bióloga Maria Elina Bichuette, professora do Laboratório de Estudos Subterrâneos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e orientadora de cursos de pós-graduação na USP em Ribeirão Preto. Principalmente da mineração — já que as cavernas costumam ocorrer em áreas propícias à exploração de minérios —, mas também dos setores de energia e agricultura, que também podem trazer impactos significativos a essas cavidades e à biodiversidade que se abriga nelas.

Ameaças externas

Apesar de fazerem parte do mundo subterrâneo, as cavernas não estão alheias ao que acontece na superfície — pelo contrário, são muito influenciadas pelo que se passa fora delas. (Por isso o licenciamento é exigido não só para atividades que ocorrem no interior das cavernas, mas também na área externa de influência delas.) Projetos de irrigação, por exemplo, podem drenar os cursos d’água que “alimentam” a caverna ou contaminá-los com resíduos de agrotóxicos e fertilizantes. A vibração gerada pelo tráfego de caminhões em estradas pode causar desabamentos, destruindo espeleotemas ou até bloqueando partes das cavernas.

Muitas das cavernas que se encaixam nas categorias de relevância alta ou máxima estão dentro de unidades de conservação — mas não todas, ressalta Bichuette. Por exemplo, a Toca da Boa Vista, maior caverna da América do Sul, com 114 quilômetros de extensão, no município de Campo Formoso, na Bahia. “É uma caverna que a gente tinha certeza que nunca seria mexida. Agora, não sei mais”, diz a pesquisadora ao Jornal da USP. Outro exemplo são as cavidades do sistema João Rodrigues, em São Desidério, também no sertão da Bahia, que inclui o maior lago subterrâneo da América do Sul (o Buraco do Inferno da Lagoa do Cemitério), e por onde passa a BR-135. Uma notícia publicada pela Casa Civil diz que o novo decreto permitirá asfaltar um trecho dessa rodovia (entre São Desidério e Correntina). “Linhas de transmissão e projetos de geração de energia limpa também vão poder ser viabilizados com a nova lei. Outro grande impacto que a medida traz é na área de mineração”, diz o texto do governo.

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A preocupação não para por aí. Mesmo cavernas que se encontram em unidades de conservação podem ser colocadas em risco por empreendimentos realizados no seu entorno, aponta Cruz Junior. Por exemplo, no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), em São Paulo, que abriga centenas de cavernas — várias delas de relevância máxima. “Toda a área em volta do parque já está requerida para mineração”, diz o pesquisador da USP.

Outras regiões que poderão sofrer impactos importantes são as do Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, e da Serra de Carajás, no Pará. Elas abrigam cavernas em formações ferríferas (ricas em minério de ferro) que possuem uma “morfologia única no mundo”, segundo Cruz Junior, e são vizinhas de algumas das maiores indústrias de mineração do Brasil. “Se você abre a possibilidade de lavrar esse minério, está ameaçando destruir uma série de cavernas sem igual no mundo”, alerta o geólogo.

As regras previstas no decreto ainda serão complementadas por uma instrução normativa, detalhando critérios para a classificação de cavernas, definição de atributos similares e outras formas de compensação. Uma oitiva para elaboração dessas normas deverá ser realizada no prazo de 90 dias, com participação do Ibama e do ICMBio. “Sem a participação da comunidade científica com expertise na área, a normativa poderá ser ainda pior que o decreto”, diz um manifesto do Fórum das Sociedades Científicas da Área de Zoologia. 


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