A cigarra e o vírus

Com quase um milhão de infectados, o Brasil vê vários estados flexibilizarem a quarentena e milhares irem às ruas e aos shoppings

19/06/2020
Por Marcelo Rollemberg

Desde que o primeiro shopping center foi inaugurado no Brasil – o Shopping Iguatemi de São Paulo, em 1966 – esses espaços cheios de lojas, cinemas e restaurantes passaram a ocupar um lugar de relevância na vida do brasileiro. Mas, mais do que uma espécie de templos pagãos do consumo, os shoppings se tornaram um hábito cultural, uma forma de viver a vida, ver e ser visto flanando diante de vitrines tentadoras. Em alguns casos, como na cidade de São Paulo, se tornou uma espécie de “praia” do paulistano, programa obrigatório de finais de semana, mas menos – digamos – democrático do que as faixas de areia da orla marítima. Mas aí o coronavírus chegou, fechou os shoppings e o brasileiro se enfurnou em casa. Pelo menos até alguns dias atrás, quando prefeituras e governos estaduais decidiram devolver, ao poucos, as lojas em prédios de aço escovado e luz artificial para os consumidores. O resultado disso? Filas nas portas dos shoppings Brasil afora. Mas fica uma pergunta: era realmente necessário colocar máscara para ver vitrines e mandar o isolamento social às favas, em um momento em que o Brasil bate na casa do um milhão de infectados pela covid-19?

Marcello Rollemberg, editor de Cultura do Jornal da USP – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Para uma multidão, sim. E parece não importar a informação de que os casos de coronavírus aumentaram exponencialmente em Florianópolis quando a capital catarinense resolveu abrir os shoppings da cidade meio que atabalhoadamente um mês atrás. E as lojas fecharam de novo. Mas não é o caso de demonizar os shoppings centers – embora possa até parecer que é essa a intenção. Não é. A questão aqui é como algumas coisas então tão enraizadas culturalmente no brasileiro que nem uma pandemia parece arrefecer. Durante a quarentena em São Paulo, quando se desejava que pelo menos 70% dos paulistanos ficasse em casa maratonando séries ou lendo, esse número mal chegou aos 50%. Descontem-se aí aqueles que precisavam realmente sair de casa para trabalhar ou por alguma outra necessidade premente, e o número continuou muito aquém do esperado.

Multidão faz fila para a abertura de shoppings autorizada pelo Governo do Distrito Federal – Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Porque “pessoas precisam de pessoas”, como atestou a psicanalista Regina Navarro Lins? Ou porque, como aferiu o pesquisador do Instituto de Psicologia da USP Marcelo Fernandes Costa, que renda e escolaridade não influenciam quando o assunto é a dificuldade de mudar as atitudes para se proteger do coronavírus? Talvez tudo isso e mais um pouco. Porque há algumas outras questões em jogo. Culturalmente, talvez não estejamos acostumados a ser previdentes, a olhar no longo prazo. Poupança, previdência privada, paciência diante de uma pandemia não parecem ser temas que tomem por demais o sono de uma parcela da população. E quando há um afrouxamento na determinação de ficar em casa, é quase como se uma deixa liberalizante fosse acionada – e tome rolêzinhos, máscaras no queixo e filas nas portas de lojas ainda fechadas no centro da cidade. É como se fôssemos a cigarra da fábula com a formiga, imprevidente e achando que o inverno vai demorar a chegar. Só que já chegou.

A isso, some-se um outro fator, ainda mais sério: quando o principal líder do País embaralha a bússola e, em vez de indicar o sossego do lar em tempos difíceis, insufla para que todos partam para as ruas, felizes e correndo riscos. Quando os sinais são trocados ou não são claros, a tendência é seguir o culturalmente conhecido, o socialmente estabelecido – mesmo que o momento exija prudência. É aí que a situação perde o rumo.

Foto: Montagem de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre fotos de Marcos Corrêa/Palácio do Planalto e Jefferson Rudy/Agência Senado

O Brasil não tem um histórico de privações, de guerras, como a Europa vivenciou, por exemplo. E nossa formação cultural, obviamente, é outra. Na Inglaterra, os pubs fecham às 23h devido a um hábito adotado durante a Segunda Guerra Mundial. Os bares tinham que fechar cedo para que os trabalhadores pudessem estar a postos no dia seguinte. Então, o barman tocava um sino às 22h50, indicando que era a hora da última rodada. E a tradição cultural permanece até hoje, sem maiores questionamentos. Portugal, que viveu no século 20 uma ditadura ferrenha por quase 50 anos, tem uma tendência a seguir e a obedecer regras. Questão cultural. Tanto, que quando lá as lojas reabriram com a nova fase de flexibilização contra a pandemia, o primeiro-ministro e o presidente da República tiveram que pedir que a população saísse de casa e fosse aos shoppings. Formigas espertas, as pessoas não se sentiam seguras em ir às ruas.

Por outro lado, na Itália – que também passou por duas guerras mundiais – a situação demorou a entrar nos eixos. País adepto aos clichês do dolce far niente e do fare la bella figura, os italianos – principalmente seus governantes – demoraram a entender a gravidade da situação, continuaram nas ruas e, quando se deram conta, o norte italiano estava infestado de covid-19. Uma outra face da questão cultural, que conseguiu ser endireitada.

Aqui, a situação ainda parece tortuosa. Afora a visão errática do Planalto, há o desejo, quase um anseio, de se seguir em frente, como se a vida, em uma canetada, tivesse voltado ao normal. Aviso de spoiler, para quem ainda tem alguma dúvida: não voltou. E sabe-se lá quando vai voltar. O dramaturgo Paulo Pontes escreveu, nos anos 1970, o musical Brasileiro, profissão esperança. Talvez seja o caso de trocar, na carteira profissional, por prudência. Pelo menos por agora. Lojas, cinemas, teatros, passeios e tantos bens culturais – ou que fazem parte de nossa herança cultural e dos nossos hábitos – continuarão lá quando a onda pandêmica passar. Mas, por enquanto, é melhor deixar o cartão de crédito guardado.