Violência às escolas: reflexões

Por Adriana Marcondes Machado, coordenadora do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP, e Paula Fontana Fonseca, psicóloga no Serviço de Psicologia Escolar do IP-USP

 18/04/2023 - Publicado há 11 meses
Adriana Marcondes Machado – Foto: Reprodução/Youtube
Paula Fontana Fonseca – Foto: IP/USP

 

Entre o final de março e início de abril de 2023, duas situações de violência ocorreram em escolas. Na primeira, em uma escola estadual de educação básica, na cidade de São Paulo, uma professora foi morta, outras pessoas foram feridas e um menino, adolescente de 13 anos, tornou-se réu por homicídio, agressão, porte de faca e ameaça. Nove dias depois, outro ato violento se deu, agora em uma escola de educação infantil na cidade de Blumenau, Santa Catarina: um homem matou quatro crianças e feriu outras quatro.

O fato de esses eventos ocorrerem em escolas merece atenção. A escola é, em nossa sociedade, espaço de transmissão do legado humano, de cuidado e formação das novas gerações e de manutenção da cultura humana. Quando se ataca uma escola são esses princípios que estão sendo destruídos. A escola é nossa resposta social à barbárie; um ataque à escola serve à barbárie.

Muita coisa aconteceu e acontece para que uma situação de violência se formalize. Essa trama de fatores se refere às condições concretas de existência, às políticas de gestão da vida em sociedade e às formas de cuidado (ou ausência delas). A banalização da violência nega essa produção e atua como uma camada de poeira que turva tudo, tão insidiosamente, chegando a se misturar na invisibilidade do próprio ar. O medo e o receio se tornam cotidianos e se materializam, por exemplo, na experiência de pais e mães de adolescentes quando seus filhos e filhas circulam pela cidade – principalmente pais e mães de meninos adolescentes negros e de meninas adolescentes.

Algumas reflexões a destacar:

1)  A escola é alvo da agressão

A escola foi alvo de violência e, rapidamente, o foco recai em indagações sobre o que a escola fez ou deixou de fazer, o que cada um(a) lá fez ou deixou de fazer. Ocorre que uma das artimanhas na produção da violência é, exatamente, negar a multiplicidade de fatores que a constitui e tornar o momento e o motivo da violência como causados por quem a sofreu – como quando se culpa a escolha de uma roupa ou a atitude de uma mulher pelo assédio sexual e estupro em que ela foi a vítima.

2)  A escola é espaço de vida diversa

A escola é espaço de disputa, nela se vivem as contradições sociais de nosso tempo. Ela é território de mistura e diversidade, nela qualquer criança ou jovem tem o direito a ser estudante:  pessoas negras, brancas, amarelas, indígenas, crianças, adolescentes, adultos, pessoas com deficiência, pessoas binárias, não binárias, lésbicas, trans, gays, pessoas de diferentes classes sociais e vinculadas a diversas religiosidades e crenças. Os ataques contra a escola são contra a vida diversa e o direito comum.

3) Modelo de vida e de convivência

Há um modelo de vida e de convivência produzido em políticas de isolamento, individualismo, competitividade e medo. Políticas que produzem vidas em que mães e pais pouco podem acompanhar o que ocorre com seus filhos e suas filhas; em que adultos não dividem suas dúvidas com outras pessoas adultas; em que não temos tempo, enquanto educadoras(es), para analisar e pensar ações em relação aos acontecimentos cotidianos. Vida-tarefeira, sem garantia das condições necessárias para aquilo que nos é cobrado fazer e, assim, o tempo de encontro, conversa e organização coletiva se esvai. Vida em que professoras(es) – e as próprias escolas – são ameaçadas(os) quando fazem aquilo que é função de seu trabalho: produzir reflexão. O isolamento, o individualismo, a competitividade e o medo são matéria desse modelo de vida e de convivência e impedem a possibilidade do exercício do pensamento para combater e enfrentar as práticas machistas, racistas, misóginas e preconceituosas em que nos forjamos.

4) Complexidades de um tempo

As situações cotidianas em que pessoas adultas – pais, mães e professores(as) – se percebem distantes e perdendo o acesso às crianças e adolescentes, incitam reflexões sobre: (a) as condições de vida, trabalho e moradia que causam sufoco físico, psíquico e material, e enfraquecem a possibilidade de agir no mundo; (b) o contexto em que vivem e se constituem as diferentes infâncias e adolescências; (c) a força das mídias, das plataformas e dos aplicativos que divulgam informações e socializam vidas em que há o domínio dessa lógica individualista e competitiva; (d) o modelo de vida e de convivência que  fortalece uma lógica punitivista que dispensa a reflexão sobre o processo de produção dos fatos.

5) A dor e o discurso do ódio

Quando as angústias, incertezas, dores, tristezas e frustrações ocorrem sem sustentação coletiva de vida partilhada, há uma quebra na experiência humana, facilitando a captura exercida por discursos do ódio que defendem a destruição de pessoas e instituições. A captura, que se intensificou nos últimos anos com a presença do extremismo de direita, foi analisada em relatório realizado por um grupo de pesquisadoras e ativistas coordenado pelo professor da Faculdade de Educação da USP, Daniel Cara. Esse extremismo de direita recruta adolescentes e adultos para o crime utilizando plataformas virtuais prenhes de posições machistas, misóginas e racistas.

6) Arma mata

A tendência em constranger as causas da violência a questões psicológicas ou psiquiátricas individuais é um reducionismo cruel que está a serviço da artimanha da violência de negar a multiplicidade de fatores que a constitui. Convém afirmar que, nessa multiplicidade, há o que mata e assassina: arma mata, política armamentista mata e cooptação para o crime mata.

Por fim:

As responsabilidades sobre a construção de situações como essas implica todos nós, de diferentes maneiras: quem age de forma violenta será responsabilizado conforme previsto em lei; quem sofre a situação de violência demandará cuidado, acolhimento e tratamento; quem vive em uma sociedade violenta (nós) é incitado a refletir e se responsabilizar por sua construção: nós Estado, nós mídia, nós educação, nós polícia, nós saúde, nós justiça, nós educadores, nós família…

Profissionais da área da educação, da saúde e da assistência social têm definido ações de cuidado para as comunidades escolares que vivem situações de violência. Nada fácil, pois a precarização desses setores tem gerado acúmulo de trabalho e esgotamento. Compreendendo que todos e todas estamos imersas e imersos em um funcionamento desigual e violento que nos diz respeito, esses(as) profissionais criam, nas ações de cuidado em relação ao processo de violência vivido, momentos de suspensão, reflexão, proximidade e solidariedade. Ocorre que enfrentar a produção das situações de violência requer ações da responsabilidade de outros e outras agentes e instituições: o controle público das plataformas digitais; o desarmamento da população; o fortalecimento de espaços coletivos de construção de discussão das políticas; as melhorias na condições de vida e trabalho; o investimento em trabalhadores e trabalhadoras da área da educação, saúde e assistência social; o fortalecimento da autonomia das escolas; o cuidado físico e material das escolas… Nada fácil, nem haveria de ser. Mas, sem isso, tenderemos a pactuar com um pensamento que torna o alvo da violência, a escola, a responsável pela produção da violência. 

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