


O fato de esses eventos ocorrerem em escolas merece atenção. A escola é, em nossa sociedade, espaço de transmissão do legado humano, de cuidado e formação das novas gerações e de manutenção da cultura humana. Quando se ataca uma escola são esses princípios que estão sendo destruídos. A escola é nossa resposta social à barbárie; um ataque à escola serve à barbárie.
Muita coisa aconteceu e acontece para que uma situação de violência se formalize. Essa trama de fatores se refere às condições concretas de existência, às políticas de gestão da vida em sociedade e às formas de cuidado (ou ausência delas). A banalização da violência nega essa produção e atua como uma camada de poeira que turva tudo, tão insidiosamente, chegando a se misturar na invisibilidade do próprio ar. O medo e o receio se tornam cotidianos e se materializam, por exemplo, na experiência de pais e mães de adolescentes quando seus filhos e filhas circulam pela cidade – principalmente pais e mães de meninos adolescentes negros e de meninas adolescentes.
Algumas reflexões a destacar:
1) A escola é alvo da agressão
A escola foi alvo de violência e, rapidamente, o foco recai em indagações sobre o que a escola fez ou deixou de fazer, o que cada um(a) lá fez ou deixou de fazer. Ocorre que uma das artimanhas na produção da violência é, exatamente, negar a multiplicidade de fatores que a constitui e tornar o momento e o motivo da violência como causados por quem a sofreu – como quando se culpa a escolha de uma roupa ou a atitude de uma mulher pelo assédio sexual e estupro em que ela foi a vítima.
2) A escola é espaço de vida diversa
A escola é espaço de disputa, nela se vivem as contradições sociais de nosso tempo. Ela é território de mistura e diversidade, nela qualquer criança ou jovem tem o direito a ser estudante: pessoas negras, brancas, amarelas, indígenas, crianças, adolescentes, adultos, pessoas com deficiência, pessoas binárias, não binárias, lésbicas, trans, gays, pessoas de diferentes classes sociais e vinculadas a diversas religiosidades e crenças. Os ataques contra a escola são contra a vida diversa e o direito comum.
3) Modelo de vida e de convivência
Há um modelo de vida e de convivência produzido em políticas de isolamento, individualismo, competitividade e medo. Políticas que produzem vidas em que mães e pais pouco podem acompanhar o que ocorre com seus filhos e suas filhas; em que adultos não dividem suas dúvidas com outras pessoas adultas; em que não temos tempo, enquanto educadoras(es), para analisar e pensar ações em relação aos acontecimentos cotidianos. Vida-tarefeira, sem garantia das condições necessárias para aquilo que nos é cobrado fazer e, assim, o tempo de encontro, conversa e organização coletiva se esvai. Vida em que professoras(es) – e as próprias escolas – são ameaçadas(os) quando fazem aquilo que é função de seu trabalho: produzir reflexão. O isolamento, o individualismo, a competitividade e o medo são matéria desse modelo de vida e de convivência e impedem a possibilidade do exercício do pensamento para combater e enfrentar as práticas machistas, racistas, misóginas e preconceituosas em que nos forjamos.
4) Complexidades de um tempo
As situações cotidianas em que pessoas adultas – pais, mães e professores(as) – se percebem distantes e perdendo o acesso às crianças e adolescentes, incitam reflexões sobre: (a) as condições de vida, trabalho e moradia que causam sufoco físico, psíquico e material, e enfraquecem a possibilidade de agir no mundo; (b) o contexto em que vivem e se constituem as diferentes infâncias e adolescências; (c) a força das mídias, das plataformas e dos aplicativos que divulgam informações e socializam vidas em que há o domínio dessa lógica individualista e competitiva; (d) o modelo de vida e de convivência que fortalece uma lógica punitivista que dispensa a reflexão sobre o processo de produção dos fatos.
5) A dor e o discurso do ódio
Quando as angústias, incertezas, dores, tristezas e frustrações ocorrem sem sustentação coletiva de vida partilhada, há uma quebra na experiência humana, facilitando a captura exercida por discursos do ódio que defendem a destruição de pessoas e instituições. A captura, que se intensificou nos últimos anos com a presença do extremismo de direita, foi analisada em relatório realizado por um grupo de pesquisadoras e ativistas coordenado pelo professor da Faculdade de Educação da USP, Daniel Cara. Esse extremismo de direita recruta adolescentes e adultos para o crime utilizando plataformas virtuais prenhes de posições machistas, misóginas e racistas.
6) Arma mata
A tendência em constranger as causas da violência a questões psicológicas ou psiquiátricas individuais é um reducionismo cruel que está a serviço da artimanha da violência de negar a multiplicidade de fatores que a constitui. Convém afirmar que, nessa multiplicidade, há o que mata e assassina: arma mata, política armamentista mata e cooptação para o crime mata.
Por fim:
As responsabilidades sobre a construção de situações como essas implica todos nós, de diferentes maneiras: quem age de forma violenta será responsabilizado conforme previsto em lei; quem sofre a situação de violência demandará cuidado, acolhimento e tratamento; quem vive em uma sociedade violenta (nós) é incitado a refletir e se responsabilizar por sua construção: nós Estado, nós mídia, nós educação, nós polícia, nós saúde, nós justiça, nós educadores, nós família…
Profissionais da área da educação, da saúde e da assistência social têm definido ações de cuidado para as comunidades escolares que vivem situações de violência. Nada fácil, pois a precarização desses setores tem gerado acúmulo de trabalho e esgotamento. Compreendendo que todos e todas estamos imersas e imersos em um funcionamento desigual e violento que nos diz respeito, esses(as) profissionais criam, nas ações de cuidado em relação ao processo de violência vivido, momentos de suspensão, reflexão, proximidade e solidariedade. Ocorre que enfrentar a produção das situações de violência requer ações da responsabilidade de outros e outras agentes e instituições: o controle público das plataformas digitais; o desarmamento da população; o fortalecimento de espaços coletivos de construção de discussão das políticas; as melhorias na condições de vida e trabalho; o investimento em trabalhadores e trabalhadoras da área da educação, saúde e assistência social; o fortalecimento da autonomia das escolas; o cuidado físico e material das escolas… Nada fácil, nem haveria de ser. Mas, sem isso, tenderemos a pactuar com um pensamento que torna o alvo da violência, a escola, a responsável pela produção da violência.
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