


Pode parecer que a importância do mártir da Inconfidência Mineira, a excepcionalidade da cidade que é patrimônio histórico mundial da Unesco, ou o valor do escultor mestiço impactado por sérios problemas de saúde estiveram sempre ali à nossa disposição. Hoje, eles são tão constitutivos da nossa cultura que alguém poderia supor que se trata de algo dado, que nasceu como que espontâneo, natural de forma límpida e cristalina. O fato é que estes valores tão elementares a nós estão intimamente ligados ao governo de Getúlio Vargas e mais especificamente ao trabalho do então Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema.
Gustavo Capanema foi como que uma ponta de lança para a estruturação dos valores culturais compartilhados nacionalmente. Foi no Brasil dos anos 1930, quando comandava o Ministério, que Ouro Preto ganhou as feições que hoje conhecemos, que Aleijadinho ganhou notoriedade nacional, que foi criado o Museu da Inconfidência e que as ossadas de alguns dos inconfidentes foram repatriadas pelo governo brasileiro, formando o Panteão da nossa liberdade. A política implementada por Capanema contribuiu também em dezenas de outros campos, encontrando a música de Heitor Villa-Lobos, a pintura de Candido Portinari e Tarsila do Amaral, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, a literatura de Graciliano Ramos, a interpretação da nossa sociedade por Gilberto Freyre, a fotografia de Marcel Gautherot, e tantos outros nomes maiores da cultura brasileira. Não é por menos que o nome de Capanema tenha sido escolhido para batizar, logo na inauguração, o edifício público que receberia o novo ministério: o Edifício Gustavo Capanema ou Palácio Capanema, monumento nacional. E por que isso nos importa?
O Edifício Gustavo Capanema foi posto à venda pelo Governo Federal, na última semana. O edifício icônico, projetado por arquitetos como Lucio Costa e Oscar Niemeyer, com um jardim de Roberto Burle Marx, azulejos de Candido Portinari, pintura de Alberto Guignard e escultura de Bruno Giorgi, tudo isso está à venda. E é preciso ter clareza de que o que está à venda não são apenas alguns milhares de valiosos metros quadrados, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Como também não está somente à venda alguns dos mais prestigiosos trabalhos de nossos mestres da arquitetura, escultura, pintura ou paisagismo. Isto não é pouco. Mas o que foi posto à venda pelo Governo Federal foi a nossa matriz cultural, a essência do que une os brasileiros. É Tiradentes, Ouro Preto e Aleijadinho que estão à venda, simbolicamente, pois ficariam assim como que moribundos desterrados sem o ministro Capanema, cristalizado no palácio público que leva o seu nome.
Se não bastasse a afronta à essência dos brasileiros, a transação imobiliária é tão descabida que resvala em dois aspectos legais. O primeiro deles diz respeito ao fato de que o Palácio Capanema é um edifício tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – o Iphan. Em sendo um bem tombado, deve-se observar a legislação que rege este monumento nacional. O Decreto-Lei nº25, que regulamente as atividades do IPHAN, destaca em seu artigo 11º o seguinte: “As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.” A proposta do Governo Federal de vender o Palácio Capanema é, portanto, um ato ilegal pelo Decreto-Lei nº25, um decreto do próprio Governo Federal.
Um segundo aspecto refere-se ao Arquivo Noronha Santos, que constitui o acervo do próprio Iphan, que ocupa alguns dos andares do Palácio Capanema. Em 2002, este arquivo foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, o Inepac, tornando o Arquivo uma estrutura atrelada ao seu local de origem. Segundo o Processo Inepac – E 18/001681/2002, que tombou o Arquivo Noronha Santos em conjunto com outros dez acervos da cidade, buscava-se “… garantir com tal ato a permanência desses acervos e bibliotecas no seu lugar de origem, onde foram produzidos e acumulados.”. Com este processo, o Arquivo Noronha Santos, o Arquivo do Iphan, foi tombado e atrelado ao seu local de origem: o Palácio Capanema. Esta vinculação é muito valiosa, pois a documentação que estrutura e fundamenta os processos legais de tombamento do patrimônio cultural brasileiro passou a estar associada ao edifício, que é símbolo da própria cultura. O Palácio Capanema é uma máquina de cultura.
Assim, como numa amálgama, o Palácio Capanema se vinculou definitivamente ao arquivo, que fundamenta o mais alto valor da nossa cultura. Se não bastasse o edifício ser talvez a mais valiosa joia da arquitetura brasileira, ele passou a carregar definitivamente em seu interior as provas legais, jurídicas e históricas da nossa cultura. Como seria possível, então, vender o edifício sem desestruturar essa amálgama? Sem desarranjar a nossa própria sociedade?
A proposta de venda do Palácio Capanema pelo governo de Jair Bolsonaro não é, portanto, apenas ilegal. Ela é um atentado a todos nós, pois resvala em valores compartilhados, comungados. Valores que chegam a ser banais de tão essenciais à nossa constituição enquanto sociedade. Valores que precisam estar ancorados naquilo que os representa, ainda que para serem reeditados, reavaliados, esquecidos, rememorados. É a nossa autonomia, independência e liberdade – como aquela almejada pelos Inconfidentes – que está em jogo nesse novo disparate do Governo Federal. É a nossa alma que foi posta à venda.