Uma caminhada kiriri

Por Daniel Ayala Contreras, doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 29/05/2023 - Publicado há 10 meses
Daniel Ayala – Foto: Arquivo pessoal

 

Na aldeia Mirandela, centro da Terra Indígena Kiriri, a comemoração do Dia dos Povos Indígenas começou bem cedo, na madrugada do passado 19 de abril.

Celebrada no Brasil neste ano pela primeira vez sob esse nome, instituído pela Lei n° 14.402, publicada em 8 de julho de 2022, que substitui a anterior denominação de Dia do Índio, a data é ocasião para os Kiriri relembrarem um acontecimento fundamental de sua história recente: a retomada da fazenda Picos.

Iniciada em 1981 e consumada em 1983, essa foi a primeira de uma série de retomadas protagonizadas pelos Kiriri em seu território, naquela altura invadido por não indígenas, um árduo e longo processo que daria lugar à demarcação e homologação da Terra Indígena Kiriri, em 1981 e 1990, respectivamente. A retomada do território, vale destacar, foi acompanhada de retomadas na esfera do ritual e da língua.

Às quatro e pouco, o grupo da zambumba e das gaitas se reuniu na Igreja do Senhor da Ascensão, para ajeitar os instrumentos. Passado um tempo, iniciou-se a concentração da população em geral, e por volta das 5h50 começou a caminhada em direção à fazenda. Trata-se de um trajeto de duas léguas e pouco, segundo as próprias estimativas dos Kiriri, realizado ao som da zambumba e das gaitas.

Pouco antes de chegar, o pessoal que partiu de Mirandela se encontrou com o pessoal procedente de Marcação, outra das aldeias Kiriri, para completar o trecho final em conjunto. Aproximadamente às 8h30, o grupo inteiro chegou à fazenda. Após uma breve passeata e de prestar as devidas obrigações aos encantados, seres invisíveis mas vivos e presentes no seu território, lideranças e anciões fizeram uso da palavra.

Relembraram as dificuldades encaradas, ao afirmarem que seu território atual se compõe de 12.320 hectares de suor, sangue e resistência. Apelaram também à continuação da luta e a serem todos índios, com sua cultura forte e com firmeza na caminhada.

Depois das falas e do café, todos partiram para Mirandela, onde a comemoração continuou com uma passeata pela praça, a exposição de trabalhos de alunos das escolas kiriris, a venda de artesanatos e, para encerrar os festejos, a realização do ritual do Toré, que se prolongou até a madrugada.

Assim, a caminhada dos Kiriri no Dia dos Povos Indígenas rememora, em uma bela metáfora, seu longo processo de retomadas, ainda em marcha.

________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.