Uma biblioteca viva: 10 anos da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Por Alexandre Macchione Saes e Hélio de Seixas Guimarães, diretor e vice-diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP

 22/03/2023 - Publicado há 12 meses
Alexandre Saes – Foto: FEA/USP
Hélio Guimarães – Foto: IEA/USP

 

A comemoração dos dez anos da abertura da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) no espaço Brasiliana da Universidade de São Paulo, completados em 23 de março de 2023, convida à reflexão sobre a trajetória percorrida e os passos futuros. Isso se torna mais oportuno e urgente num tempo em que a cultura, e especialmente a cultura do livro, enfrenta grandes desafios, quando não tem que lidar com o descrédito e os ataques frontais.

A coleção, com cerca de 32 mil títulos e 60 mil exemplares, resulta dos esforços de dois dos maiores bibliófilos brasileiros, Rubens Borba de Moraes (1899-1986) e José Mindlin (1914-2010), para formar um conjunto que revela vários interesses: literatura, história, manuscritos, relatos de viagem, livros científicos, tipografia, livros de artista, periódicos e iconografia. Vale destacar a singularidade da coleção da BBM, uma biblioteca composta de materiais raros, muitas vezes exemplares únicos e insubstituíveis, seja pelas marcas autógrafas que trazem, tais como dedicatórias e anotações, seja pelas encadernações especiais, seja ainda pelas trajetórias que muitos descreveram passando pelas mãos de figuras decisivas para a história do País.

Ao longo de quase um século, Borba de Moraes e Mindlin garimparam materiais Brasil e mundo afora para formar uma coleção extraordinária, que é em si mesma uma prova de que interesses pessoais e particulares não são de forma alguma incompatíveis com projetos coletivos e o bem comum. Aliás, essa visão dos livros e do conhecimento como algo a ser compartilhado esteve sempre presente quando José e Guita Mindlin mantinham a biblioteca em sua casa, no bairro do Brooklin, recebendo ali, generosamente, várias gerações de pesquisadores de todas as partes.

Em termos retrospectivos, cabe avaliar os desafios colocados pela transferência — vale notar que muito pouco usual no Brasil — de um extraordinário acervo de obras raras do âmbito privado para o espaço de uma universidade pública. O processo teve início em 2005, com a doação feita pela família Mindlin à Universidade de São Paulo.

A vinda da coleção para o espaço dinâmico e complexo de uma universidade pública, frequentada diariamente por dezenas de milhares de pessoas, exigiu a construção de infraestrutura adequada para acomodar o acervo e deu origem ao espaço Brasiliana, que passou a abrigar o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), a Edusp e a BBM. Implicou ainda o estabelecimento de protocolos de conservação, catalogação, digitalização e consulta do material.

A abertura para o público acadêmico propiciou a identificação, descrição e divulgação de subconjuntos da coleção, conferindo maior inteligibilidade a ela, criando novos focos de interesse e incentivando a produção de conhecimento. Nestes dez anos, pesquisadores de várias áreas identificaram no acervo materiais dos e sobre os viajantes que percorreram a América do Sul entre os séculos 16 e 18, uma coleção importante de obras do Modernismo paulista, que vem permitindo reavaliar os sentidos, a amplitude e a atualidade do movimento em São Paulo e no Brasil, e uma notável coleção de primeiras edições de Machado de Assis.

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Os resultados desse trabalho sinalizam para leitores e pesquisadores da Universidade e externos a ela o potencial de pesquisa e conhecimento oferecido por uma coleção de obras raras do porte e da qualidade dessa conservada pela BBM. As investigações resultaram em exposições, palestras, simpósios e workshops, sempre gratuitos e abertos ao público em geral, reunindo estudiosos de várias partes do País e do mundo.

A biblioteca também abriu espaço para a reflexão sobre temas e práticas decisivas para a formação de acervos como o seu. É o caso do colecionismo, que envolve muitos agentes (críticos, professores, bibliotecários, encadernadores, restauradores etc.), e da constituição de redes de sociabilidade em torno do livro, atividades tão marcantes na dinâmica cultural do século 20.

Assim, o conjunto dos volumes reunidos por Guita e José Mindlin, que se juntaram à coleção de Rubens Borba de Moraes, constitui o testemunho de uma visão desses bibliófilos sobre o papel dos livros e das bibliotecas para o conhecimento do País. Isso articula-se com visões sobre o passado-presente-futuro do Brasil construídas a partir de uma cidade, São Paulo, que no mesmo período em que a coleção era formada se afirmava como centro industrial, financeiro e cultural cosmopolita.

Neste momento de revisão dos sentidos tanto dos materiais impressos como do próprio Brasil, uma instituição que traz no seu nome as palavras “biblioteca” e “brasiliana” tem a responsabilidade e o desafio de propor e acolher uma reflexão sobre as novas dimensões que esses termos ganham no século 21.

Reflexão que tem sido compartilhada com outras instituições voltadas para a preservação de acervos e de fomento aos estudos brasileiros, tais como a Biblioteca Nacional e a Biblioteca Mário de Andrade, no Brasil, ou as Bibliotecas Nacional da França, Oliveira Lima e a John Carter Brown no exterior.

Cabe pensar, por exemplo, sobre o lugar dos manuscritos e dos impressos num momento em que os suportes digitais se tornam os principais meios de difusão de informação e opinião, o que ocorre em alcance e velocidade inéditos. Cabe também pensar nos novos sentidos que documentos e livros que serviram de referência para as interpretações do Brasil, definindo para várias gerações o que era ou o que deveria ser o País, adquirem neste tempo, o nosso tempo, em que a diversidade de interesses põe em xeque qualquer noção unívoca do que seja “o Brasil” e “o nacional”.

Diante disso, vale perguntar: como uma biblioteca de livros raros pode responder às demandas e aos anseios de uma comunidade leitora cada vez mais diversa e mais habituada aos suportes digitais? Como os materiais que ela guarda podem servir ao debate qualificado sobre as múltiplas e novas formas de entender o País?

Desde sua inauguração, em 2013, a BBM encampou esse desafio, com um projeto vigoroso de digitalização do seu acervo, tornando-se referência para pesquisadores e leitores interessados em assuntos relacionados ao Brasil. Hoje, ela disponibiliza de forma gratuita e universal 3.372 documentos, muitos deles raríssimos, entre livros, periódicos, imagens e mapas. Esses materiais podem ser acessados 24 horas por dia, 7 dias por semana, de qualquer lugar do mundo. Em média, são cerca de 1,5 milhão de acessos por ano, que atingiram um pico no ano de 2020, quando foram registradas quase 3 milhões de consultas à Biblioteca Digital e aos projetos virtuais da BBM.

Por meio da constituição de seu acervo digital, a BBM passou a compartilhar seus objetos digitais com outras instituições. Em projetos como a Brasiliana Iconográfica – convênio com o Instituto Moreira Salles, Pinacoteca, Itaú Cultural e Biblioteca Nacional – e o Portal de Revistas de Ideias e Cultura, para o estudo das revistas modernistas brasileiras e portuguesas – convênio com a Universidade Nova de Lisboa –, a BBM estabelece diálogos de seu acervo com outros, assim como encontra novos leitores.

Desde 2015, a BBM acolhe, por meio de editais, pesquisadores residentes para desenvolver projetos de curta, média e longa duração com temas afins aos da coleção. O contato de estudiosos com o acervo não só produz conhecimento especializado em várias áreas do saber, mas também revela e chama atenção para dimensões dele até então desconhecidas, abrindo novas frentes e possibilidades de estudo.

Esses esforços de ampliação do alcance da biblioteca e de aprofundamento do seu potencial como centro de pesquisa e produção de conhecimento resultaram em dezenas de exposições presenciais e virtuais, assim como em publicações, impressas e digitais. Assim, a biblioteca, um espaço de preservação da memória e da cultura brasileira, por meio da disseminação de estudos brasileiros, reforça seu compromisso com as futuras gerações. Num ambiente em que os instrumentos de pesquisa se modernizam, em que o acesso à informação se multiplica, ao produzir a curadoria do conhecimento acumulado, a BBM reitera sua missão de mobilizar a valiosa produção histórica e literária de seu acervo para refletir sobre o Brasil contemporâneo.

Com isso, a BBM chega aos seus primeiros dez anos realizando aquilo que José Mindlin apontou como o caminho para a Biblioteca: “Ela tem de ser viva!”. É nesse espírito que renovamos o convite a leitores e pesquisadores para uma visita, presencial ou virtual, ao seu magnífico e singularíssimo acervo.

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