Um hippie à procura de um autor

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 27/04/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 02/05/2018 as 14:48

Jurandir Renovato – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O sujeito atravessou toda a extensão da sala da redação arrastando suas sandálias de couro trançado e as longas franjas de sisal cru da bolsa a tiracolo. Como atraído por um ímã (ou por uma energia cósmica), veio em linha reta na minha direção.

Tinha mais de um metro e noventa de altura, barbas e cabelos longos e desgrenhados e empunhava a última edição do Jornal da USP. Perguntou, meio que afirmando, se eu era o Jurandir. Eu fiquei olhando para aquela figura como que recém-saída de um documentário sobre Woodstock e tive um mau pressentimento.

No jornal que ele brandia na mão repleta de anéis – cujo conjunto compacto me lembrou um soco inglês –, havia uma resenha minha de página inteira sobre a tradução inédita em português de um romance bastante popular entre a comunidade hippie da década de 60.

Na resenha, eu tentava ser direto, o livro tinha cumprido sua função no contexto da história recente das transgressões libertárias ocidentais e, dentro do espírito da época, possuía lá suas qualidades. Fora dele, nem tanto. Eu falava exatamente isso. E até aí, tudo bem. O problema era eu ter aproveitado o enorme espaço da página para tirar onda com aqueles que, como o indivíduo na minha frente, mantinham-se ainda presos a uma concepção de mundo tão obsoleta quanto uma bata indiana florida.

No calor da hora – e eu estava mesmo em vias de começar a suar – formulei algumas hipóteses para a sua presença na minha sala. Em nenhuma delas eu me sentia muito confortável. Rapidamente descartei as mais básicas. Ele não era o autor do romance, que, até onde sabia, havia ficado por lá mesmo, nos anos 60, vítima de overdose; tampouco o tradutor, um respeitado professor de literatura octogenário.

Podia ser o editor, mas não acreditei que se desse a esse trabalho, até porque, como se comenta no meio editorial, é sempre melhor ter um livro do qual se fala mal do que um do qual não se fala nada, e sua feição, de resto, não se adequava à de quem estava ali para me agradecer.

Sobrava uma alternativa, a mais simples e plausível, porém não menos indigesta: ele era um leitor ressentido. Possivelmente alguém que, ofendido com meus comentários ao seu estilo de vida e modo de vestir, viera até ali para tirar satisfação em nome de sua categoria.

Nunca soube que houvesse uma categoria dos hippies profissionais, mas como tudo é possível hoje em dia, era bem provável também que ele não estivesse sozinho. E isso me deixou ainda mais ressabiado – a possibilidade de haver outros como ele escondidos em algum canto do prédio, apenas esperando o momento certo para me abater.

A ideia de ser confrontado por um grupo de hippies melindrados era tão absurda que, mesmo intranquilo, não consegui conter um sorriso. Mas ele não estava para brincadeira, percebia-se. E ainda que estivesse sozinho, era suficientemente grande para me deixar numa situação no mínimo desvantajosa no caso de um enfrentamento tête-à-tête.

Em campo aberto eu até podia ter uma chance, mas atrás de uma escrivaninha o máximo que conseguiria era me defender com o grampeador. E aí é que estava o problema. Imagine o ridículo de apanhar de um hippie na frente dos colegas de trabalho? Apanhar de um hippie, mesmo sendo um hippie corpulento como aquele, era como apanhar de um bêbado, de um padre ou de um anão.

Eu tinha de apaziguá-lo. Mas como? Talvez pudesse convencê-lo de que me identificava pra valer com o ideário flower power da contracultura, com suas revoluções individuais, desrepressões, desbundes – com os desbundes principalmente – e que até mesmo achava bastante sexy essas meninas que, como a Baby Consuelo da época dos Novos Baianos, não depilavam as axilas.

(Não sei se era uma boa ideia esse último comentário. Vai que ele tivesse uma irmã ou uma namorada hippie, e a alusão aos seus sovacos, peludos ou não, podia entornar ainda mais o caldo.)

Em todo caso, olhando bem para ele, não parecia ser violento. A seriedade que estampava no rosto talvez não fosse de raiva nem de revolta, mas de respeito. Pensei então num motivo um pouco menos belicoso para sua presença diante de mim. Ele seria um leitor convertido! De algum modo meu texto tinha tocado em um ponto profundo do seu ser, o que lhe abrira outras portas de percepção, pelas quais se deparara com a total e irreversível consciência do anacronismo de sua condição. E isso o fizera desistir de ser hippie.

Sentindo-se então curado, graças ao meu texto, da inveterada psicodelia, viera até mim para sacramentar sua reintegração ao universo das pessoas caretas. Imaginei-o uma versão mundana de São Francisco de Assis, tirando as roupas na frente de todo mundo e, agora pelado, indo pegar a tesoura na mesa da secretária para cortar os cabelos e a barba. Em face de tal visão, ponderei ser melhor levar logo um soco e acabar com aquilo de uma vez.

Se essa era uma possibilidade bastante constrangedora, de ele vir a ser um hippie nu se regenerando diante dos meus olhos, a outra que formulei em seguida me fez sentir um calafrio na espinha.

E se ele fosse fruto da minha imaginação? Mas não no sentido de eu estar vendo coisas, numa espécie de projeção holográfica do meu pensamento perturbado, como acontece nas alucinações induzidas por drogas. Não, eu não tomava droga nenhuma, e ele estava bem ali, na minha frente, em carne e osso e sandálias de couro.

O que passou por minha cabeça foi algo ainda mais bizarro. Era tão grande sua semelhança com a figura esboçada nas entrelinhas do meu texto, que, tal como um fantasma, ele bem poderia ser a corporificação de uma ideia produzida por mim no ato da composição da resenha, como um personagem de ficção que de repente se desprendesse da página escrita e saísse à luz do dia em busca de seu criador, no caso, eu.

Eu?! Eu devia era parar de ler tanto Pirandello, pensei comigo, no momento mesmo em que ele mexeu a boca para perguntar se eu lembrava da Claudinha. Como se acabasse de transpor a cortina espessa de um universo a um tempo sobrenatural e metaliterário, devo ter feito cara de “do que você está falando?”. Ele foi mais específico: “A Claudinha amiga do João Fumaça”. Do João Fumaça eu me lembrava, claro.

Daí me lembrei também da Claudinha. Magrinha, quietinha, meio bicho-grilinha. “Mas ela não estava morando em Londres?”, perguntei, me recompondo. “Tava”, ele disse. “Eu sou namorado dela… e estou fazendo um curso aqui na ECA… como ouvinte…” Parecia meio sem jeito. “Ela te emprestou um livro de história da arte… só não sei quem é o autor…” Eu também não sabia. Isso fazia quase vinte anos. Não imaginava que os hippies tivessem a memória tão boa.

Combinamos que eu iria procurar o livro e o traria na semana seguinte. Não pude deixar de perguntar sobre o exemplar do Jornal da USP na sua mão. Ele olhou para o jornal como se só agora se desse conta de que estava ali. “Ah, isso… eu peguei lá embaixo, na portaria, mas ainda não li, não.” Enquanto saía, lembrei o nome do autor.

 

 


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