Tarsila popular e antropofágica

Diana G. Vidal é professora titular de História da Educação da Faculdade de Educação e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP)

 04/04/2019 - Publicado há 5 anos
Diana Gonçalves Vidal – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

De 5 de abril a 28 de julho, o Masp apresenta a exposição Tarsila Popular, com curadoria de Fernando Oliva. Ao todo, a mostra pretende exibir 120 trabalhos. A iniciativa se insere no ciclo Histórias das Mulheres e Histórias Feministas realizado pelo museu em 2019, que, dentre outras, faz referência a artistas contemporâneas como a venezuelana Gego e a portuguesa Leonor Antunes, além de brasileiras de meados do século XX, como Lina Bo Bardi, Lygia Clark e Djanira da Motta e Silva.

A exposição, como se pode ler no website do MASP, propõe uma nova abordagem da produção de Tarsila do Amaral, “em geral apresentada como parte da tradição modernista europeia. Sem ignorar os aspectos modernistas canônicos e formais de sua obra, o projeto busca enfatizar seus personagens, temas e narrativas, especialmente em relação a questões sociais, políticas, raciais e de classe, bem como chamar atenção para as aproximações com a arte popular e vernacular” (https://masp.org.br/exposicoes/tarsila-popular).

Compondo o conjunto dos trabalhos exibidos, estão 12 obras de Tarsila integrantes da Coleção Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros. A mais famosa delas é o quadro a óleo sobre tela intitulado O Mamoeiro, de 1925. As demais constituem-se em desenhos sobre papel, dentre eles, a série Paisagem Antropofágica. Os quatro desenhos que formam esta série, datados de 1929, esboçam elementos de uma brasilidade reinventada pela artista. O Fundo Mário de Andrade foi adquirido da família pela USP em 1967 e doado ao IEB em 1968. É constituído por aproximadamente 30 mil documentos, uma biblioteca de 17.624 volumes, além de uma coleção de artes visuais de 1.234 peças, 667 das quais são obras de arte.

Tarsila e Mário conheceram-se em São Paulo em 1922, por intermédio de Anita Malfatti. O encontro deu-se após a Semana de 1922, razão pela qual Tarsila não participou do evento. No entanto, os três estabeleceram laços de uma sólida amizade e junto com Oswald de Andrade, com quem Tarsila viria a se casar mais tarde, e Menotti Del Picchia formaram, naquele mesmo ano, o “grupo dos cinco”, importante referência do Modernismo no Brasil. De acordo com Aracy Amaral, no livro Tarsila: sua obra e seu tempo, era “um grupo de doidos em disparada por toda parte no Cadillac verde de Oswald […] Foi a época das corridas noturnas ao alto da Serra onde liam poemas, de reuniões na garçonnière de Oswald, no atelier de Tarsila, na casa de Mário”.

No final de 1922, Tarsila estaria de volta a Paris, para onde havia ido dois anos antes com o intuito de aperfeiçoar-se na Académie Julien e estudar com Émile Renard.  No seu retorno à cidade-luz, frequentou os ateliês de André Lhote, Gleizes e Fernánd Léger. Data de 1923, o quadro a óleo sobre tela intitulado A Negra, no qual já se prenunciava a etapa antropofágica, cuja manifestação icônica estaria na pintura Abaporu, de 1928, mas cuja figuração se apresentaria na Abaporu, de 1929. O esboço, feito em lápis e aquarela sobre papel, de A Negra também está sob a guarda do IEB.

Do canibalismo, que marcara as primeiras impressões sobre o Brasil nos escritos ainda do século XVI, como, por exemplo, o clássico de Jean de Léry, Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, de 1578, passava-se à antropofagia, cujo acento se dava nos processos de deglutição e consumo. Da violência à reapropriação, à ironia e ao sarcasmo, tão bem expressos na locução “Tupi or not tupi, that is the question”, enunciada por Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico, trezentos e cinquenta anos após a publicação de Jean de Léry.

O Manifesto, aliás, havia se inspirado na tela. No dicionário tupi-guarani de Montoya, o significado de Aba é homem e Porú, que come. Abaporu, o homem que come, quadro dado de presente a Oswald por ocasião de seu aniversário em 1928, ilustrou a capa do número inaugural da Revista de Antropofagia. Dava origem ao movimento que revolucionaria a literatura modernista, positivando a apropriação cultural na construção da identidade brasileira, e que circularia em outros países, inspirando intelectuais.

Em visita à Universidade de São Paulo, em 1985, Michel de Certeau, estudioso francês da obra de Jean de Léry, em palestra proferida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, referiu-se à Escola Antropofágica como um movimento célebre nascido no Brasil e muniu-se da metáfora da antropofagia para explicitar o conceito de apropriação, de consumo produtivo, presente em seu livro A invenção do cotidiano.

Antropofagia da antropofagia: das viagens de estudo de Tarsila à França; da cultura popular brasileira ressignificada pela arte; da pintura devorada como manifesto; de tabu transfigurado em totem; de Jean de Léry e Lévi-Strauss deglutidos por Michel de Certeau – Tarsila do Amaral marcou de forma indelével muito mais que o movimento modernista brasileiro. Instilou uma nova simbolização da cultura, não restrita à Pauliceia desvairada ou a Pindorama, mas que fagocitou em território alheio.

 


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