Muito antes de Charles Darwin publicar os trabalhos seminais sobre a teoria da evolução através de seleção natural, A Origem das Espécies (1859) e A Descendência do Homem (1871), cientistas de diversas disciplinas já indagavam quais teriam sido as circunstâncias que levaram à emergência da faculdade da linguagem na evolução, a capacidade biológica que nos permite desenvolver a gramática de uma língua.
O assunto é de grande interesse não apenas pelo papel da linguagem na caracterização da espécie humana, mas também pela natureza singular dessa inovação evolutiva, a qual se distingue por sua autapomorfia, ou seja, exclusiva a uma única espécie, e por seu desenvolvimento evolutivo recente, supostamente estabelecido entre os últimos 50.000-100.000 anos.
Por se caracterizar como um sistema cognitivo complexo e recente, a faculdade da linguagem desafia a lógica da seleção natural, uma vez que complexidade deriva de um processo gradual.
O problema se acentua quando observamos diferenças qualitativas entre os sistemas de comunicação animal e a linguagem humana, no que concerne ao poder expressivo ilimitado dessa última.
Um dos caracteres que assinalam a complexidade da faculdade da linguagem é o domínio de um extenso vocabulário que se amplia cotidianamente. O léxico humano excede em dezenas de milhares os sinais referenciais empregados por animais não humanos e, através de suas palavras, é capaz de expressar uma ampla gama de conceitos, que vão desde referentes concretos, como “árvore” e “livro”, a referentes abstratos, como “alegria” e “saudade”.
No entanto, o que permitiu que somente a espécie humana pudesse expressar um conjunto amplo e variado de conceitos — através das palavras — no curso da evolução?
Por se caracterizar como um sistema cognitivo complexo e recente, a faculdade da linguagem desafia a lógica da seleção natural, uma vez que complexidade deriva de um processo gradual
Em minha tese, em desenvolvimento, busco fornecer uma explicação para a emergência da competência lexical humana e da explosão vocabular ocorrida na espécie.
Argumento que a capacidade humana para expressar, ilimitadamente, conceitos através de sons ou sinais, deriva de um precursor biológico compartilhado com primatas não humanos — um sistema lexical —, o qual, após sofrer uma alteração em seu funcionamento, abriu caminho para uma explosão vocabular em um curto intervalo de tempo.
Variados grupos de primatas não humanos apresentam em seu repertório vocal sons que sinalizam a presença de um dado predador nas proximidades. Um dos sistemas de vocalização mais conhecidos é o dos macacos vervet do leste africano, os quais produzem, pelo menos, três vocalizações de alarme acusticamente distintas: (1) uma vocalização que indica a presença de leopardos, (2) uma vocalização que indica a presença de águias e (3) uma vocalização que indica a presença de cobras.
Cada vocalização desencadeia uma estratégia de proteção diferente no bando. A vocalização para leopardos faz com que o bando se esconda em galhos finos na copa de uma árvore, impossíveis de sustentar o peso do predador.
A vocalização para águias, por outro lado, faz com que o bando desça da árvore e se proteja em áreas cobertas no solo. Já a vocalização para cobras faz com que muitos fiquem em pé e passem a olhar, cuidadosamente, para a área que os circunda.[1]
Observação: Para citação, a figura acima foi retirada de Queiróz e El-Hani (2006, p. 187)
[Link: http://www.iupui.edu/~arisbe/menu/library/aboutcsp/queiroz/meaning.pdf]Uma vocalização, entretanto, somente pode fazer referência a um único tipo de entidade ou evento no mundo, seja ele um leopardo, uma águia, uma cobra ou um distúrbio nas imediações.
Uma evidência para tal argumento é a impossibilidade de um macaco vervet produzir a vocalização para águias com o intuito de indicar a presença de outro predador, tal como um leopardo, ou mesmo a presença de outro animal.
Cada vocalização desencadeia uma estratégia de proteção diferente no bando. A vocalização para leopardos faz com que o bando se esconda em galhos finos na copa de uma árvore, impossíveis de sustentar o peso do predador.
Além disso, macacos vervet infantes, durante seu processo de desenvolvimento vocal, apenas produzem a vocalização associada a águias para pássaros ou objetos no ar, mas nunca para a existência de animais no solo. Da mesma forma, eles somente produzem a vocalização associada a cobras para objetos que se assemelham a uma cobra.
Tal característica das vocalizações de primatas não humanos — ou seja, sua capacidade de fazer referência a apenas um único tipo de entidade — é o que restringiu a ampliação do repertório primata.
As palavras da linguagem humana, por outro lado, não estão associadas a um único significado. Palavras podem ser polissêmicas, ou seja, elas podem denotar conceitos variados, tal como a palavra “terra”, que significa um planeta do sistema solar, uma superfície sólida, um terreno, o lugar onde nascemos, poeira, dentre outras coisas.
As palavras também podem obter significados distintos em construções específicas. Por exemplo, a palavra “sapo”, que comumente significa um tipo de anfíbio, pode significar “desaforo” na expressão “engolir sapos”.
A possibilidade de uma única palavra poder recuperar inúmeros conceitos é a chave para se entender a expansão do léxico humano na evolução.
Defendo a seguinte hipótese. A capacidade humana para se referir a entidades ou eventos no mundo é compartilhada com primatas não humanos. Essa capacidade pode ser caracterizada em termos de um sistema lexical presente tanto na mente de primatas quanto na mente de humanos.
Em primatas, esse sistema lexical contém representações simbólicas que correspondem a um tipo específico de predador, ou seja, cada uma das representações em seu sistema lexical diz respeito a uma classe predeterminada de animais.
Nesse sentido, a representação simbólica vinculada à vocalização para águias somente pode ser empregada para significar águias.
Por sua vez, as representações simbólicas que compõem o sistema lexical da espécie humana foram semanticamente empobrecidas na evolução. Seu empobrecimento fez com que tais representações deixassem de ter um significado específico.
Assim, uma vez que as representações simbólicas da espécie humana são destituídas de um significado rígido, elas passam a agir como “curingas” e, então, podem ser associadas a mais de um significado.
Como resultado, o surgimento de representações simbólicas sem um significado específico permitiu que diversos conceitos pudessem ser expressos, fato que culminou na emergência das palavras da linguagem humana e, consequentemente, promoveu o surgimento de um léxico amplo e expansível na espécie.
[1] Cf. Seyfarth, Cheney e Marler (1980) [Link: http://science.sciencemag.org/content/210/4471/801].