Sociedade digitalizada: “plataformização” das relações e uma privacidade “zerada”

Elizabeth Saad é professora titular sênior da ECA-USP

 12/04/2019 - Publicado há 5 anos

Elisabeth Saad – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Temos assistido a sucessivas vulnerabilidades de segurança nos dados que circulam nas plataformas sociais. A mais recente em março/2019, no sistema de mensagens do Facebook, quando hackers puderam capturar a lista de contatos de cada um dos usuários. Também temos vivenciado a multiplicidade de discursos e tendenciamentos opinativos que proliferam nestas plataformas, para não nos esquecermos das eleições de 2018 no Brasil.  São fatos que merecem uma reflexão mais ampla sob um ponto de vista conceitual dos processos de comunicação e sociabilidade.

O predomínio de plataformas sociais em nosso cotidiano e a instantânea vinculação de seus usuários a um processo de exposição por meio de dados nos colocam diante de uma diversidade de questionamentos. A questão mãe de todas as outras é se o cidadão comum – feliz conectado à rede em seu celular (pago a duras penas para sentir-se integrado) e encantado com a descoberta de seu lugar de fala – tem consciência do quanto sua presença e interação na rede digital é um canal aberto para a quebra de sua privacidade.

O termo “plataforma” tem conotações diversas nos campos das tecnologias, da política, das artes, da economia, dos objetos da indústria. Gostaríamos de focar no entendimento do que seja plataforma num cenário de digitalização conectada da sociabilidade: a concentração de um conjunto de estruturas num mesmo ambiente para operar um determinado processo de comunicação e informação.

Estruturas tais como troca de mensagens, criação de grupos sociais, postagem de conteúdos, expressão de sentimentos (vide a funcionalidade “curti”), transações comerciais, atividades lúdicas nos games, acesso a mídias informativas, indicação de localização, uso de recursos audiovisuais, entre outras. Estruturas que, quando apresentadas num mesmo ambiente de interface com o usuário – seja um website ou um aplicativo –, geram um conjunto de facilidades que estimula o uso e a permanência no ambiente coletivo plataforma. Um exemplo típico é quando, ao utilizarmos pela primeira vez um aplicativo, tal como o Waze, surge na tela de cadastramento a opção “conectar-se com o Facebook”, simplificando o preenchimento de dados, pois os mesmos já estão disponíveis via login no Facebook. Sugestão facilitadora, mas que tem implicações significativas.

Atualmente a rede digital possui um conjunto daquilo que chamo “plataformas sociais âncora” representadas pelas big tech companies – Facebook, Google e seu sistema Alphabet, Amazon, Apple, Microsoft, Linkedin e Twitter –, que concentram em seus ambientes uma imensidão de aplicativos, funcionalidades e interações para manter o usuário alimentando continuamente informações sobre si em suas respectivas bases de dados. Essas plataformas caracterizam-se como empreendimentos privados, com fins comerciais, atuam num ambiente de disputa econômica e têm suas origens e matrizes no Vale do Silício, na Califórnia.

Novamente exemplificando e indicando como funciona a interoperabilidade nas plataformas, o Facebook é proprietário dos aplicativos Instagram e WhatsApp, portanto de todas as informações que neles circulam; o usuário, por facilidade, pode conectar suas postagens do Twitter ao seu feed do Linkedin, ampliando o seu perfil de relacionamentos; uma compra na Amazon pode gerar sugestões de publicidade na interface de e-mail por meio do sistema AdWords do Google.

Por que a necessidade de retomarmos uma discussão mais conceitual sobre esse cenário? Por que nossa privacidade, valor intrínseco de individualidade, está em nível “zero” em nossos dias?

Poderíamos abordar o tema sob o contexto de segurança na rede, mas temos motivos tão complexos quanto.

Um primeiro motivo está nas próprias origens da internet – a rede mundial de computadores e o WWW, concebidos como espaços de amplificação democrática das sociedades e do liberalismo. Tim Berners-Lee, o “pai” do WWW e criador da web Foundation, manifestou-se nas comemorações de 30 anos da web sobre a necessidade de analisarmos como a rede evoluiu para o bem e para o mal, e para onde ela ruma. Berners-Lee criou a hashtag #ForTheWeb objetivando disseminar a discussão de forma global.

Para Berners-Lee, da mesma forma que a web se tornou a ágora coletiva e uma sucessão de fontes para estudo, design, comércio, medicina e acessibilidade geral, ela também se tornou um espaço para o surgimento de oposições, desinformação, geração de discursos contraditórios e de ódio e criminalidade. Efetivamente, não temos hoje aquela web concebida nos laboratórios suíços do CERN para gerenciar o massivo volume de informações em torno do acelerador de partículas.

A proposta do pai da web para que o futuro da rede seja mais inclusivo e propositivo está na busca de uma espécie de renovação do contrato global focado em erradicar ou minimamente estagnar disfunções que a sociedade criou, como as intencionalidades maliciosas e geradoras de ataques diversos; gerenciar os sistemas e modelos de negócio que buscam imposição de conteúdos ou de anúncios publicitários por meio de governança de algoritmos, uso de robôs e fazendas de clicks; e as consequências negativas decorrentes das disfunções.

Todo o cenário descrito por Berners-Lee indica uma intervenção quase sempre deliberada dos sistemas e plataformas ancorados na rede mundial de computadores na privacidade de cada usuário ao acionar a teia de coleta de dados por eles produzidos. Um cenário que não é atribuído apenas às plataformas sociais, aos governos ou a indivíduos específicos, mas algo que se tornou prática deste conjunto por conta da própria evolução técnica. Assim, para Tim Berners-Lee, “hoje gastamos nossa energia na discussão dos sintomas desses problemas, ao invés de nos centrarmos nas raízes dos mesmos”.

Um segundo motivo para refletirmos sobre a plataformização generalizada e a consequente perda de privacidade está nos aspectos da infraestrutura da rede e nos modelos econômicos decorrentes.

Hoje as “plataformas sociais âncora” concentram, simultaneamente, todo o universo de transações e interações ali abrigadas, além do armazenamento de dados de tudo o que trafega nos seus ambientes. A famosa nuvem computacional, onde muitos de nós guardamos nossas fotos, textos e documentos, tem donos e ocupa fisicamente imensos data centers que armazenam, processam e distribuem informações mundo afora.

Um ativo precioso para qualquer plataforma big tech em termos de exploração econômica e transacional de dados que ali estão sendo alimentados compulsoriamente pelos usuários. Mas um ativo mais precioso ainda se considerarmos o poder derivado do conhecimento que se pode ter de comportamentos, opiniões, formas de relacionamento e escolhas sociais que cada usuário faz ao participar de uma plataforma social. Falamos aqui de controle social por meio do desenvolvimento, uso e governança de sistemas algorítmicos, inteligência artificial, blockchain, machine learning e deep learning.

Recorremos aqui a uma recente proposição de um dos primeiros autores a refletir sobre o mundo conectado, o pesquisador Pierre Lévy. O poder cognitivo gerado pela circulação de dados nas plataformas sociais âncora gera dois lados de uma mesma moeda: o controle social em mãos de conglomerados privados ou a produção ampliada e livre de inteligência coletiva. Para Lévy, deveríamos rumar para uma nova esfera pública conectada, onde as plataformas de dados e metadados deveriam ser um bem comum baseadas nos princípios de transparência, abertura e uniformidade: “um projeto que só teria sucesso se tiver uma vantagem técnica sobre as plataformas comerciais existentes, sustentada por dimensões filosóficas e políticas”.

O cenário sociotécnico e econômico onde as plataformas sociais trafegam impacta diretamente sobre a ideia de privacidade “zero” já que o simples fato de cada um de nós estar e participar destas arenas – uma condição que assumimos com a permissão de uso de nossos perfis, ideias, opiniões, sentimentos, gostos e trocas. Uma permissão que, na maioria, ocorre quase que involuntariamente pelo desejo de pertencimento social.

Por último, o terceiro motivo para refletirmos a plataformização é da ordem das relações sociais e dos processos de comunicação e informação necessários para uma sociedade dialógica e democrática. Aqui reforçamos o papel do jornalismo como um dos campos legítimos para uma formação de opinião pública equilibrada e de múltiplas vozes, para a quebra das chamadas bolhas informativas e para um chamamento às possibilidades dialógicas do contraditório.

A plataformização da informação sobre fatos e acontecimentos foi detalhada em recente relatório publicado pelo Tow Center for Journalism, da Universidade de Colúmbia em Nova York. Para o centro de pesquisa norte-americano, as plataformas sociais evoluíram para além de seu papel de canal de distribuição para uma atividade de controle sobre aquilo que as audiências e as marcas pagam para que o algoritmo priorize nos feeds dos usuários.

Antes de prosseguirmos, é importante marcar o panorama brasileiro. O Reuters Institute for the Study of Journalism, da Universidade de Oxford, no Digital News Report publicado em 2018, indica que no Brasil 66% da amostra pesquisada usa o Facebook para acesso a notícias. São dados também reiterados pela comScore com indicadores similares para a ampla audiência da rede.

Toda a transformação das redes digitais levou (e ainda deve levar por muito tempo) as empresas em geral e as jornalísticas em particular a buscarem formatos adequados às mudanças comportamentais da audiência. Com isso, e em busca de maior alcance, acabaram por escolher estar atreladas a uma presença por meio das plataformas sociais e, portanto, dependentes da sua governança algorítmica; ou por ter uma presença independente das plataformas sustentada pela credibilidade de suas marcas não importando o suporte – e aqui destacam-se os casos da Folha de S. Paulo no Brasil e do The New York Times nos Estados Unidos.

Falamos de protagonismo na formação de opinião associado à sustentabilidade de uma indústria ainda receosa de embarcar na transformação digital. Falamos de um dilema entre a manutenção de um modelo de informação caro, mas que mantém o controle de receitas, audiência limitada e opinião nas mãos do publisher; e a submissão ao modelo das plataformas com ganho de alcance e visibilidade em detrimento do controle informativo.

Os três motivos que apresentamos têm uma base única – o controle contínuo dos dados dos usuários e de sua privacidade para uma comercialização privada da esfera pública. E, portanto, retornamos ao nosso questionamento inicial: a consciência do quanto a presença e a interação nas plataformas sociais digitais são um canal aberto para a quebra de privacidade.

Obviamente não temos respostas prontas, mas temos, sim, enquanto pesquisadores e educadores instalados numa universidade como a USP, um papel de atenção e conscientização da sociedade por meio de ações de extensão, de cultura e de proximidade com o cotidiano. Temos também a clareza de que o processo de plataformização social está instalado e é de difícil reversão. Parafraseando o pensador israelense Yuval Noah Harari, temos o dever e o papel atento de não nos deixarmos hackear inadvertidamente por um sistema de plataformização das relações que poderia levar à desconfiguração da esfera pública que conhecemos.

 


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