Sobre a arte de prefaciar – Eduardo Galeano

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira no curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP)

 02/04/2019 - Publicado há 5 anos

[Este texto inaugura a coluna Cultura, com que passo a colaborar quinzenalmente neste Jornal]

 

Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Em memória de Joaquim Alves de Aguiar

 

Durante o segundo semestre de 1995, nas aulas de Introdução aos Estudos Literários, o professor Joaquim Alves de Aguiar[1] propunha que todo bom livro conteria um excelente início. Para ilustrá-lo, ele recorria a exemplos da literatura francesa (Madame Bovary, de Gustave Flaubert; O Vermelho e o Negro, de Stendhal); portuguesa (O Primo Basílio, de Eça de Queirós) e brasileira (Dom Casmurro, de Machado de Assis).

Anos depois, quando passei a lecionar Literatura, Língua Portuguesa e/ou Comunicação em colégios, cursinhos e faculdades, confirmei repetidas vezes a hipótese do saudoso professor “Juca” (como ele gostava de ser chamado). De fato, o primeiro capítulo daqueles, e de muitos outros livros, sintetizavam o que de melhor havia no romance: a dicção do narrador, o caráter das personagens, a descrição do ambiente, a localização da história em determinado tempo etc.

Mais tarde, pareceu-me viável ampliar o escopo da tese. Descobri, lendo obras de outras áreas do conhecimento, que a lição de Juca poderia se estender às seções iniciais dos estudos de Freud (como se vê em “Introdução ao Narcisismo”, O Futuro de uma Ilusão ou O Mal-estar na Civilização); nas páginas iniciais de Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer; no primeiro capítulo de O homem unidimensional, de Herbert Marcuse etc.

Em 2010, li, estupefato, As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano – republicado aquele ano, no Brasil. Atenho-me à Introdução ao volume, que começa deste modo:

A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializaram em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde dos remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta.[2] 

Contundente e irônico, o parágrafo não só reforça a tese do professor Juca. Denuncia o que está por detrás da violenta história da América Latina e diz muito sobre a condição dos países que a compõem – submetidos ao jugo econômico, primeiro dos europeus (até o final do século XIX); depois, o dos Estados Unidos (especialmente após a Segunda Guerra Mundial).

Acredito que a Introdução a As Veias Abertas da América Latina poderia ocupar assento no panteão da nossa sociologia e historiografia, ao lado da (in)definição do que viesse a ser “brasileiro”, com que Sérgio Buarque de Holanda abria Raízes do Brasil: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”.[3]

Poderíamos citar inúmeros parágrafos com elevado poder de clareza, precisão e impacto. Recorro a outra síntese, digna de nota, que apresenta o segundo capítulo de A ideia de Brasil Moderno, de Octávio Ianni:

 

Em 1888-89 o Brasil tentou entrar no ritmo da história. Aboliu a Escravatura e a Monarquia, proclamando a República e o trabalho livre. Liberou forças econômicas e políticas interessadas na agricultura, indústria e comércio. Favoreceu a imigração de braços para a lavoura, povoadores para as colônias em terras devolutas e artesãos para a indústria. Ao mesmo tempo, jogava na europeização, ou no branqueamento da população, para acelerar o esquecimento dos séculos de escravismo.[4]

 

Sérgio Buarque de Holanda, Eduardo Galeano e Octávio Ianni. Como disse, essas amostras poderiam vir ao lado de muitas outras. Porém, o intuito deste artigo não é afetar erudição ou encerrar a matéria. Tampouco se está a invocar autoridades por mero capricho. Trata-se de (re)apresentar ao internauta livros notáveis, a fim de dar relevância ao papel do impresso para a circulação das ideias.

A palavra, como se sabe desde Jean Paul Sartre, é o que propicia o pensamento, e não o contrário. Estamos diante de historiadores com formação, trajetória e orientações diferentes, a apontar impasses e contradições enfrentados por brasileiros e latino-americanos. Reler o que descobriram seria muito oportuno, especialmente em momentos de obscurantismo, como o que atravessamos.

Nos últimos tempos, tornou-se compulsório reafirmar o que deveria ser evidente para todo e qualquer conterrâneo, em especial se a nossa intenção for defender o Estado efetivamente democrático de Direito, neste país. Reconhecer, respeitar e defender as diferenças todas pressupõem assegurar, dentre outros fatores, o ensino gratuito, público e de excelência, que não veja problemas em formar cidadãos capazes de inovar não apenas em métodos e produtos, mas no exercício da solidariedade.

Acredito que a Introdução a As Veias Abertas da América Latina poderia ocupar assento no panteão da nossa sociologia e historiografia

A falta de identidade e o não pertencimento à terra, a que se referia Sérgio Buarque de Holanda; a modernização contraditória explicitada por Octávio Ianni, são argumentos formulados com intervalo de meio século, o que não impediria estabelecer infelizes correspondências. Nesse sentido, por que (re)ler As Veias Abertas da América Latina?

Talvez porque as teses respaldadas por pesquisas realizadas com seriedade tornaram-se raras. Em seu lugar, lidamos com discursos rasos e virulentos que confundem criticidade com negação de evidências. Ora, essa postura costuma ser adotada justamente por aqueles que desprezam os livros e jornais, mas concedem supercrédito a achismos e opiniões, em vídeo, com que andam a estirar a pouca paciência que nos resta.

No Prefácio à tradução brasileira de 2010, Eduardo Galeano reafirmava, quarenta anos depois da primeira edição de As Veias Abertas, o que acontecia aqui e em outros países, até o final da década de 1960. Em que consiste o livro? Substancialmente, na tentativa de mostrar que a colonização do território americano pelos europeus revelava coincidências impressionantes, tanto temporais (entre o final do século XV e o início do século XVI), quanto de método.

Para o poeta e historiador uruguaio, o estatuto colonial continua(va) a vigorar entre nós, latino-americanos. Nossa condição era sintomática: revelaria falta de identidade, desvalorização da cultura e fragilidade econômica entre os povos rebaixados à posição subserviente, frente ao poderio militar de um punhado de países, sugestivamente nomeados como superpotências.

Causa estranheza que não se questionem incertos pressupostos, defendidos pelo avesso por governantes que se acostumaram a interferir violentamente nos demais países, enquanto agitam as asas da águia que tudo vê e monitora – em nome da “democracia” e da “liberdade” -, orgulhosos de pertencer a uma terra reservada aos homens “bravos”:

 

Até meados do século passado o nível de vida dos países ricos do mundo excedia em 50 por cento o nível dos países pobres. O desenvolvimento desenvolve a desigualdade: em seu discurso na OEA em abril de 1969, Richard Nixon anunciou que ao fim do século XX a renda per capita nos Estados Unidos seria quinze vezes maior do que na América Latina.[5]

 

Em tempos de bravatas avalizadas por pseudofilósofos, em nome do futuro, da retidão moral e da liberdade, no país da concentração de renda, da negação do passado e das desigualdades sociais, seria benéfico relembrar, com Galeano, que “Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas, ao longo da torturada história latino-americana, ressurgem nas novas experiências, assim como os tempos presentes tinham sido pressentidos e engendrados pelas contradições do passado”.[6]

Se Eduardo Galeano estivesse vivo, provavelmente indagaria aos que restam da nação dita brasileira: “Que patriotismo estão a defender?”; “a que distância os governos caminham em relação ao povo?”; “o que há para comemorar?”. Algo parecido aconteceria se eu compartilhasse um café com o mestre Joaquim Alves de Aguiar.

 

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[1] Joaquim Alves de Aguiar faleceu em 2016. Ele era docente do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, curso de Letras, na FFLCH, USP.

[2] Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina, Trad. Sérgio Faraco, Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 17.

[3] Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 26ª ed., São Paulo, Companhia das Letras, p. 31.

[4] Octávio Ianni. A Ideia de Brasil Moderno, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 21.

[5] Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina, p. 19.

[6] Idem, ibidem, p. 25.


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