Sétima instância da vida (Antonio Candido)

Aguinaldo José Gonçalves, professor de Teoria Literária da Unesp, poeta, ensaísta e crítico de arte

 15/05/2017 - Publicado há 7 anos
Aguinaldo Gonçalves – Foto: Divulgação

Aguinaldo Gonçalves – Foto: Divulgação

Há vidas que suplantam a própria vida. Tentei protelar estas palavras por saber quantas serão ainda proferidas em homenagem a Antonio Candido. Entretanto o que move hoje o meu ser inteiro é maior que as vicissitudes do instante. Este homem atuou em minha vida de várias formas e com intensidade incomparável, por isso decidi usar este meio de comunicação para passar às pessoas comuns e não comuns algumas informações/ensinamentos de quem com ele conviveu em planos distintos. Dividirei o assunto em partes para que não exaura o leitor. Não sei ainda quantas partes haverá mas gostaria de cumprir minha missão humana e intelectual expondo coisas que vieram do lado de dentro de Antonio Candido para o aprendiz e amigo Aguinaldo Gonçalves.

Iniciarei dizendo de sua fina ironia, que me reporta ao carioca Machado de Assis e ao mineiro Carlos Drummond de Andrade; ironia esta que fez dele um ícone de sua pseudo-serenidade e lhe conferiu uma forma profunda de lidar com os ignóbeis que cruzaram o seu destino. Como Drummond e Machado, vestia-se com discrição mantendo-se em uma esfera de poucos tons entre o cáqui e às vezes o verde-musgo da gravata. Todos os dias às 3 da tarde gostava de comer a sua fruta, antes de voltar ao seu trabalho intelectual. À referida ironia deve-se assinalar que incluía a família brasileira e sua família mineira com valores analisados por Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala. Antonio Candido foi meu padrinho intelectual desde que o conheci, era animado com algo em mim que chamava de “harmonia de espírito”, escrito por ele na orelha de meu livro Transição e Permanência: Miró/ João Cabral – Da tela ao texto. Foi ele que me informou que eu era o primeiro negro a defender tese em Letras na Universidade de São Paulo e, sorrindo, disse-me que eu poderia contar para todo mundo.

Dentro desse caracol de brilhos todos convergentes para a construção deste grande ser, a figura do professor emerge com toda a vitalidade, com toda intensidade, rigor, perenidade… Antonio Candido, dentre todos os seus grandes atributos, é, foi e será sempre o professor. É muito difícil, mas eu partiria da ideia de que Antonio Candido representa o ato de professar, ser professor como professar, fazer catalisar todas as virtudes daquele que leva o outro a aprender, como apontaria muito bem o grande pensador Carl Ramson Rogers.

Antes de tudo, naquelas tardes da década de 70 em que tive o privilégio de participar de suas aulas, era bonito ver as salas, o grupo de alunos inscrito e aceito por ele, compondo totalmente a sala de aula; dentre eles, hoje, grandes pessoas que prefiro não nomear, mas eram pessoas lúcidas, inteligentes e prontas para receber as suas aulas. A grande maioria desses alunos (sendo que alguns já percorreram as instâncias da vida) passou a representar paradigmas decisivos da literatura e das artes no meio intelectual brasileiro… e ele com uma postura indescritível, sempre com o mesmo tom de elegância, sempre de pernas cruzadas, desenvolvia a reflexão permeada sempre com uma certa desconfiança no sorriso ao falar do conhecimento. Os franceses pareciam ser seu fio de prumo, seja na invenção, na ficção, na poesia e nas teorias; parecia, como Drummond, ter nos franceses a sua preferência. Entretanto o pensamento crítico de Antonio Candido se movimentava por todas as vertentes clássicas e modernas da crítica literária indo da Estilística de Leo Spitzer e de Erich Auerbach às reflexões linguísticas de Roman Jakobson. Em sua postura indiciada pelo olhar é que residia toda a sua força e, sem esforço, ele nos mobilizava para aquilo a que se propunha desenvolver. Se não o cumpríssemos ele não cobraria de maneira declarada, mas nós nos cobraríamos com sensação de vazio, de incompletude, de não ter levado a cabo aquilo que o mestre propôs. Clareza, muita clareza, talvez seja um de seus mais evidentes traços, clareza na exposição, mas não na facilidade, sua clareza não era a do fácil, era daquele ziguezaguear do pensamento tendo sempre uma meta esclarecedora da qual ele jamais saíra.

Assim que entrei no programa de pós-graduação da USP fiz uma pequena peraltice, porque eu não tinha domínio do francês e o domínio era exigido para apenas as 20 vagas do curso, então, recomendado por meu querido e saudoso orientador, professor dr. João Alexandre Barbosa, a quem segredei que eu não dominava o francês mas que queria fazer o curso. Confiando um pouco nas minhas traquinagens, o professor João Alexandre permitiu que eu me inscrevesse no curso do professor Antonio Candido omitindo a minha ignorância da língua. O resultado: eu emagreci 7 kg porque tive que mentir o tempo todo fazendo leitura genuína teórica e ficcional no idioma francês, coisa que eu revelei a ele na nossa última entrevista do curso e ele achou muita graça, me aprovando, inclusive, com nota máxima. Nesse curso, eu entrei no universo de Charles Baudelaire, com a leitura do poema Le chat. Tive medo de que ele me pedisse que lesse o poema em classe e foi isto que aconteceu, entretanto eu houvera me preparado valendo-me do apoio de uma amiga para expressar-me de maneira correta na leitura do poema.

O professor Antonio Candido foi banca nas minhas duas teses, no mestrado e no doutorado, e essa atitude juvenil que tive foi retomada durante minha defesa de doutorado que, ilustrada simpaticamente por ele, tornou-se um ato positivo. Na verdade o professor não gostava de atitudes lineares consideradas sérias e aí estava o melhor de sua conduta intelectual e humana.

As aulas do professor Antonio Candido eram inquestionáveis, invioláveis, ele se valia de um método quase cartesiano, mas com índices que eu diria hoje de natureza lacaniana pela forma do ziguezaguear e o modo movediço que nos conduzia ao pensamento, como na pintura de M. C. Escher.

A gradativa elevação das minhas relações com o professor e orientador ocorreu assim que defendi a minha tese de doutorado, que resultaria na obra Laokoon revisitado, em 1988. Foi quando passei a me dedicar aos estudos da obra do escritor francês Marcel Proust Em busca do tempo perdido, que seria a obra base para minha tese de livre-docência, que em forma de livro seria denominada Museu movente- o signo da arte em Marcel Proust. Antonio Candido, para minha surpresa e alegria, convidou-me a pesquisar na sua biblioteca particular sobre o escritor francês. Foi um período maravilhoso de nossa amizade.

Possuindo um dos maiores acervos sobre Proust do mundo e dispondo tudo à minha pesquisa eu tinha a sensação de entrar para o espaço oracular desenhado em duas dimensões: o estudo de obras singulares, raras, daquele gênio da literatura francesa e mundial e a outra esfera, adentrar o espaço mágico do grande pensador e condutor do pensamento Antonio Candido de Mello e Souza. Nossos encontros se davam às 14h dos dias agendados no seu sobrado da Vila Olímpia, em São Paulo. Marcados pela pontualidade, a porta se abria instantaneamente e o professor registrava o ritual de minhas pesquisas, primeiramente oferecendo-me um copo de água; a seguir sentava-se em uma poltrona, eu na outra, e comigo conversava durante vinte minutos.

Eu sempre ficava curioso pelo tema sobre o qual ele iria tratar, e o tratava com graça e naturalidade exemplares. Dentre eles jamais me esquecerei de alguns, tais como a descrição da presença de seu pai no velório de Machado de Assis, em que permaneceu ao lado de Euclides da Cunha e assistiu à aproximação de Austregésilo de Athayde ainda criança do caixão e que, na idade adulta, se tornaria presidente da Academia de Letras. Outro tema foi por ele preparado por meio de fotos mostrando-me o modo como Machado de Assis foi se esbranquiçando ao longo de sua vida, chamando-me a atenção para esse fenômeno físico que talvez implicasse um comportamento moral. Destes temas de relevância o professor passava em um outro encontro ao engraçado, segundo ele, enegrecimento das tias brancas preconceituosas de família mineira que, ao irem envelhecendo, iam emergindo em suas peles manchas escuras denunciando a miscigenação escondida na raça brasileira.

Um dia, ao chegar à sua casa, dois livros se justapunham sobre a poltrona: O primo Basílio, de Eça de Queiroz, e Dom Casmurro, de Machado de Assis. O seu único comentário foi que estava preferindo ultimamente a leitura de obras brasileiras e portuguesas. Ali me pareceu haver índices de uma ironia oculta. A minha pesquisa durava cinco horas: das 14h às 19h, quando ele descia as escadas e eu entendia que era chegada a hora, porém às 15h o professor descia para comer uma fruta ou tomar um copo de leite, que me oferecia e eu não aceitava. Às 16h dona Gilda de Mello e Souza, finíssima na sua elegância, descia as escadas, ia até o living e voltava oferecendo-me um pequeno pedaço de torta, na maioria das vezes, de maçã, em um pequeno prato de porcelana sobre um subplate, creio que de prata e toalhinha de linho; era nessa hora que, enquanto eu saboreava a torta, ela proseava um pouco sobre a minha matéria de estudos fazendo comentários os mais distintos sobre o Impressionismo, assunto de sua especialidade.

A descrição detalhada desses passos do casal Mello e Souza atingiu-me profundamente como marcas de afeição, educação, gentileza e, sobretudo, noções de humanidade que jamais esquecerei, por isso creio relevante assinalar com crayon estas instâncias de vida bem mais que obscurecer com a disforia da morte.

 

 


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