Sem protagonismo, a bancada evangélica dança conforme a música no Congresso Nacional

Por Renan William dos Santos, doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

 04/10/2019 - Publicado há 4 anos
Renan William dos Santos – Foto: Reprodução Currículo Lattes / Fapesp
Políticos evangélicos vão dominar o país”; “a nova Constituição será a Bíblia”; “a laicidade do Estado brasileiro está sob ameaça”; “os ‘crentes’ fanáticos irão instaurar uma espécie de xaria pentecostal no Brasil”; “não vai mais ter Carnaval”; “o samba será substituído pela música gospel”; “nosso futuro será terrivelmente evangélico”.

Profetizar o apocalipse não é prática comum apenas no segmento evangélico. O estilo escatológico também é recorrente entre alguns estudiosos dessa fatia religiosa. Foi partindo dessa atmosfera carregada de receio e desconfiança que Reginaldo Prandi e eu lançamos ao debate a questão “Quem tem medo da bancada evangélica?” (Revista Tempo Social, 2017, vol. 29, n. 2).

Lá, apontávamos que a crescente participação dos evangélicos na política, um fato indiscutível, tinha como efeito principal a progressiva “conversão” desses agentes religiosos em agentes políticos, mais do que a conversão das pautas políticas nacionais em pautas religiosas. Em outras palavras: imersos na vida partidária, os evangélicos vão aprendendo a jogar o jogo político, o jogo nada sagrado das negociações, acordos e relativizações, e a preocupação prioritária é a de se dar bem nesse jogo, não mudar suas regras.

Em sua melodia, o canto da sereia da “política evangélica” (as aspas se justificam: esse ator unificado simplesmente não existe) pode até passar por estrofes nas quais todos cantam em coro, como a defesa da família e de certos valores quase sempre afeitos à moral sexual, mas um ouvido mais atento e sociologicamente treinado pode perceber as dissonâncias nessa harmonia e os percalços que ocorrem nos bastidores durante a afinação.

Esses desencontros já começam na nomenclatura. A categoria “evangélico” é extremamente problemática, pois de forma alguma congrega a mesma unidade contida na categoria “católico”, para ficar em um exemplo mais próximo no ramo cristão. É obvio que também existem múltiplos catolicismos e, mesmo no interior da Igreja Católica, existem inúmeras correntes ideológicas. Também é óbvio que todo conceito unifica idealmente certos fenômenos para torná-los mais compreensíveis. Mas quando vemos a categoria “evangélico”, nas conversas cotidianas ou na mídia, é comum nos esquecermos que as denominações evangélicas vivem em pé de guerra entre si e defendem agendas extremamente divergentes.

Essas denominações não demonizam apenas os cultos afro-brasileiros, como comumente se imagina. Se você encontrar duas igrejas evangélicas no mesmo quarteirão, uma em cada esquina, provavelmente mal vai notar a diferença entre uma e outra, porém é muito provável que os demônios que estão sendo expulsos em uma delas sejam identificados pelos pastores como provenientes da ação maléfica da igreja evangélica instalada na outra ponta do quarteirão. Também é provável que os pastores de ambas passem boa parte dos cultos marcando mais as diferenças entre si do que em relação a concorrentes distantes.

No pulsante e pluralizado mercado religioso brasileiro contemporâneo, não poderia ser diferente. Se meu produto é muito semelhante ao do concorrente, eu preciso investir pesado nas diferenças. Na falta de diferenciais muito claros, a melhor estratégia é provar que o outro “não presta”, que é “mentiroso”, que faz propaganda enganosa, etc.

Ocorre que na mesma medida em que as igrejas assumem a lógica de empresas concorrentes, também os fiéis assumem a lógica de consumidores que escolhem o que mais lhes interessa. Até por isso, as conversões acontecem, hoje em dia, sem que daí decorram necessariamente grandes traumas e transformações radicais no estilo de vida. Tal postura seletiva na esfera religiosa também tem amplas repercussões políticas. Isto é, da mesma forma que o fiel não aceita integralmente todas as orientações religiosas que ouve do púlpito, tampouco aceita passivamente as insinuações feitas no mesmo espaço sobre quais seriam as melhores escolhas políticas.

É por essa razão que aqueles que afirmam que o apoio das igrejas pentecostais foi determinante na eleição de Bolsonaro, na verdade, estão invertendo causa e efeito: não é porque elas apoiaram Bolsonaro que ele ganhou; é porque elas perceberam que Bolsonaro iria ganhar que passaram a apoiá-lo. Não houve uma ampla movimentação de apoio explícito a Bolsonaro enquanto ele não era considerado um candidato viável. Fosse uma mera questão de alinhamento de valores, o apoio deveria acontecer desde o início. Isso sem contar que concorreram nessa eleição outros candidatos muito mais alinhados ao ideário evangélico.

O que muitas denominações evangélicas fizeram, e fazem muito bem há anos no Brasil, isso sim, foi “captar” o clima político e ir com a maré. Para os que ainda não estão convencidos, basta lembrar que isso já aconteceu antes. Edir Macedo, por exemplo, já qualificou abertamente o então candidato Lula como encarnação do anti-Cristo. Depois, quando o cenário se desenhou favoravelmente ao petista, Macedo passou a ser um de seus maiores defensores no meio evangélico. Quando o tempo virou novamente e o tsunami do antipetismo chegou com tudo, Lula voltou a ser retratado como era no início.

Voltando à metáfora musical, vale lembrar da brilhante descrição feita por Candido Procopio Ferreira de Camargo sobre o papel das religiões nas sociedades modernas: o de segundo violino da orquestra, aquele que só entra em cena vez ou outra para “responder” à melodia que vem sendo ditada por outrem.

Na atual legislatura, seguramente uma das composições de governo mais conservadoras de nossa história democrática, a fraqueza da bancada evangélica é, justamente, não ter a quem responder, uma pauta a qual possa reagir, um inimigo a quem possa se opor. Ou seja, a famigerada “influência” da bancada evangélica no nosso fazer político tem sempre de ser qualificada com um adjetivo muito importante: reacionária. Ela só tem poder de reação, ela só aparece na contraposição a algo. Se precisar propor, paralisa-se.

Assim, enquanto a chamada “pauta de costumes” hiberna no Congresso, a “pauta das reformas” anda a todo vapor. No jogo que vão aprendendo a jogar, os políticos evangélicos, tal como o restante do Congresso, estão mais preocupados com o déficit da Previdência Social, o aumento do desemprego e questões tributárias do que com a elaboração de políticas públicas visando a “regenerar” moralmente o País. A besteira do “meninos usam azul, meninas usam rosa” fica a cargo, por sua vez, de uma ministra caricata, totalmente alheia ao centro do poder político e muitas vezes desmerecida publicamente pelo próprio presidente.

A julgar pela composição da bancada evangélica, talvez essa hibernação seja boa para o grupo. Afinal de contas, se acordarem e resolverem propor algo, podem acabar descobrindo que o inimigo mora no templo ao lado.

 


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