Rejeitos radioativos

Emico Okuno é professora do Instituto de Física da USP

 01/07/2019 - Publicado há 5 anos
Emico Okuno – Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

 

O jornal O Estado de S. Paulo publicou em 16 de maio de 2019 a matéria “Secretário-geral da ONU alerta para risco de vazamento radioativo no Pacífico: António Guterres profere um discurso aos estudantes de Fiji e diz que a estrutura construída na Ilha de Runit é ‘caixão’ herdado da Guerra Fria, e ressalta que habitantes da região precisam de ajuda para lidar com consequências dos testes nucleares”. O depósito de resíduos de testes nucleares dos Estados Unidos fica no arquipélago das Ilhas Marshall, nos atóis de Bikini e Enewetak, no Pacífico.

Por sua vez, a revista Galileu, na edição on-line de 29 de maio de 2019, publicou a matéria “Testes nucleares ainda causam vazamentos radioativos no Oceano Pacífico”.

Assim, a polêmica sobre rejeito nuclear volta ao noticiário.

Rejeito nuclear radioativo é termo técnico para lixo nuclear que pode ter várias origens: material usado na medicina e na indústria; acidentes como o de Goiânia; combustível exaurido de reator nuclear. Esses rejeitos podem ser classificados de acordo com a atividade. Neste artigo trataremos somente dos rejeitos de reatores nucleares.

Os rejeitos de baixa atividade de reatores provêm de luvas, aventais, máscaras, ferramentas, vidraria de laboratório contaminados e são armazenados em tambores por 50 ou até 300 anos. Os de média atividade, como os filtros de ar, de purificação do refrigerante e as partes de equipamento substituídas são acondicionadas após sua incorporação em matriz sólida por cimentação e ficam armazenados também por 50 até 300 anos.

A imagem abaixo mostra os tambores de aço com rejeitos de baixa e média atividade dos reatores de Angra. Ali são produzidos em média 390 tambores de rejeitos de baixa atividade e 1.000 de atividade média por ano.

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Foto: Divulgação/ Eletrobrás, Eletronuclear

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Uma das práticas usadas em muitos reatores nucleares foi a de enterrar rejeitos de baixa e média atividade. A imagem abaixo mostra rejeitos de baixa atividade enterrados no deserto de Nevada, nos Estados Unidos. Essa região foi usada para testes nucleares americanos sendo que a primeira bomba ali detonada foi em 1951 e de 1951 a 1992 foram realizados 928 testes nucleares.

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Foto: Wikimedia Commons

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No início da era nuclear, os rejeitos de baixa atividade chegaram a ser jogados em valas. Essa prática era adotada em vários reatores nucleares, inclusive o de Oak Ridge National Laboratory. Esse laboratório foi estabelecido a partir de 1943 a fim de produzir e separar plutônio para ser usado em bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial no Projeto Manhattan.

Os rejeitos de alta atividade são combustíveis exauridos. A cada ano, 1/3 do combustível nuclear queimado é trocado por um novo. Este tem ainda de 0,7% a 0,8 % de urânio-235 e de 0,6% a 0,7% de plutônio. Por ser altamente radioativo e muito quente, é estocado em uma piscina com profundidade de 10 m a 12 m localizada no próprio reator ou nas proximidades do prédio do reator, por no mínimo cinco anos e no máximo uns 40 anos. Quando a piscina fica lotada, o rejeito é colocado nos chamados dry casks, que são cilindros de tipicamente 5,2 m de comprimento, 2,5 a 3,5 m de diâmetro e 150 toneladas de peso.

Até a presente data não há no mundo depósito permanente de rejeito de combustível queimado de reator. Os Estados Unidos possuem atualmente 97 reatores de potência alta operacionais, 36 desativados e dois em construção, segundo IAEA/PRIS. Já produziram 75 mil toneladas de rejeito altamente radioativo de combustível queimado que estão armazenadas em piscinas de seus reatores ou em dry casks.

O primeiro reator nuclear do mundo para a produção de plutônio em grande quantidade foi construído em 1944 na cidade de Hanford, no estado da Califórnia, nos EUA. Esse plutônio foi utilizado na primeira bomba atômica que foi chamada Gadget, detonada no Teste Trinity em 16 de julho de 1945 no deserto Jornada del Muerto, no Novo México, e na bomba atômica Fat Man, lançada em Nagasaki em 9 de agosto de 1945, três dias após a explosão da bomba Little Boy, à base de urânio-235, em Hiroshima.

Desde então, no mundo todo começaram a se construir reatores nucleares para a produção de material para bomba atômica, sem se preocupar com os rejeitos resultantes. Dessa forma, à medida que a quantidade dos mais diferentes tipos de rejeitos foi aumentando, lotando as piscinas, iniciaram-se as tratativas para a resolução da questão. Então, os tambores contendo até partes de reator nuclear foram jogados no mar, como vemos abaixo.

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Foto: Divulgação / londonconvention.org

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Uma das soluções cogitadas foi lançar para o espaço, mas havia o receio de esse rejeito um dia cair no solo do país. Outra solução seria alugar um terreno em um país subdesenvolvido para ali depositar o rejeito indesejável.

Nenhum país tinha uma solução para armazenar rejeitos de alta atividade provenientes de seus reatores nucleares. Até 1972, Bélgica, França, Alemanha, Itália, Japão, Holanda, Rússia, República da Coreia, Suíça, Reino Unido e EUA jogaram no mar rejeitos de seus reatores.

Na Alemanha, mais de 120 mil barris de rejeito nuclear foram colocados nos últimos 50 anos na mina de sal Asse II, em Gorleben, na qual seus túneis estão com risco de desabamento.

O rejeito de alta atividade resultante do combustível nuclear exaurido deve ser estocado durante 10 mil a 100 mil anos. Há uma proposta apresentada pelo Departamento de Energia americano, em 1993, para que se deixe escrito junto ao rejeito a seguinte mensagem:

“Este lugar não é um lugar de honra. Nada extremamente estimado é comemorado aqui. Nada de valor está aqui. O que está aqui é perigoso e nos causa repulsa. Esta mensagem é um aviso sobre perigo”.

A pergunta que sempre me persegue é: em que língua deixar esta mensagem para ser lida daqui a 10 mil ou 100 mil anos?

No Brasil, a geração anual média de rejeitos de atividade baixa e média é de cerca de 390 tambores de 200 litros no reator de Angra I e de 1.000 tambores de 200 litros em Angra II. As piscinas para armazenar combustível queimado das usinas Angra 1 e Angra 2 têm capacidade até 2021. A imagem abaixo mostra a piscina com combustível usado no reator de Angra II.

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Foto: Divulgação / Eletronuclear

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Nos Estados Unidos, o Department of Energy (DOE) iniciou um estudo em 1978 para verificar a possibilidade de armazenamento de rejeito de alta atividade de seus reatores em Yucca Mountain. Foram 20 anos de estudo com gasto de US$ 9 bilhões. O Congresso Americano aprovou o projeto em 2002 com início de construção em 2017 e custo estimado de US$ 90 bilhões. Só que o então presidente Obama cancelou o projeto em 2010. Em maio de 2018, a administração Trump tentou rediscutir a questão Yucca Mountain. Desde então continuam sendo feitos vários estudos para tentar resolver a questão. Vários ativistas dizem que cada carregamento de rejeito de combustível nuclear de reatores no território americano para Yucca Mountain é uma Chernobyl ambulante.

Poucos países possuem projeto para depósito permanente de rejeito de alta atividade de combustível queimado de seus reatores nucleares. Um desses países é a Finlândia, com o Projeto Onkalo. O depósito fica a 500 m de profundidade, com descida em espiral de uns 5 km, numa rocha granítica. A escavação da rocha foi iniciada em 2004 e o início da construção, em 2016. O início do uso é previsto para 2023, e o completo preenchimento ocorreria em 2120.

Na França, o polêmico projeto de construção do Centro Industrial de Armazenamento Geológico (Cigeo) foi aprovado em julho de 2016, pela Assembleia Nacional Francesa. Trata-se de uma megaestrutura a 500 metros abaixo da terra para armazenar 80 mil metros cúbicos de rejeito nuclear e previsto para durar 100 mil anos. Ativistas ambientais apelidaram o projeto de “Chernobyl subterrânea”.

O reator número 4 de Chernobyl explodiu em 26 de abril de 1986, após ter funcionado apenas 25 meses. A central nuclear de Chernobyl foi construída nas proximidades da cidade de Pripyat. Um sarcófago de concreto, cobrindo o reator, foi construído às pressas em 206 dias após a explosão, empregando 90 mil pessoas que foram chamadas de liquidadores. Em 2006, apareceram rachaduras e buracos nas paredes do sarcófago e, em fevereiro de 2013, parte do teto desabou com o peso da neve. Um novo projeto para enclausurar o sarcófago foi construído e terminado em 2016. A imagem abaixo mostra o novo sarcófago, que deve durar 100 anos.

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Foto: Reprodução / New York Times

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Outra quantidade monstruosa de rejeitos nucleares resultou dos reatores acidentados de Fukushima, no Japão. Tudo começou com um terremoto de magnitude 9 no dia 11 de março de 2011, seguido de maremoto e tsunami, que acabou por inundar os reatores, desativando seus sistemas de resfriamento. Isso provocou a explosão dos reatores. Em consequência, os solos e lixos radioativos de locais contaminados nos arredores dos reatores acidentados chegaram a somar 22 trilhões de metros cúbicos. A camada superior do solo foi completamente removida e colocada em sacos pretos de plástico. Um dos locais de armazenagem desses sacos pode ser visto abaixo. Cada coluna é constituída de cinco sacos, sendo que o último contém terra limpa, para blindar a radiação dos sacos inferiores.

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Foto: Reprodução / MagnusMundi

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A água usada no resfriamento de reatores de Fukushima, agora contaminada radioativamente, está armazenada em mais de 1.000 tanques de 10 m de altura.

Segundo IAEA/PRIS, em 11 de junho de 2019, há no mundo 451 reatores nucleares em operação, 54 em construção e 174 fechados permanentemente.

O período de operação de um reator nuclear é previsto para 40 anos e foi prorrogado por mais 20 anos. Mas o tempo médio de funcionamento de todos os reatores fechados do mundo, até julho de 2018, é de 25,3 anos.

Segundo a International Atomic Energy Agency, em 2011, os principais motivos para fechamento de reatores para geração de eletricidade são: 52% econômicos (a energia nuclear é cara); 21% aceitação pública; 13% tecnológicos; 9% requisitos de licenciamento; e 4% incidente ou acidente operacional.

Por este texto, pode-se ver claramente os vários problemas (ainda sem solução no caso de rejeitos) existentes com reatores nucleares para geração de eletricidade. Entretanto, vários países insistem nessa tecnologia, quando há água, sol e ventos em abundância o ano todo. Vale a pena pensar no assunto.

 

 

 


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