Ramadã e o diálogo inter-religioso necessário na formação de uma sociedade laica

Por Francirosy Campos Barbosa, antropóloga e professora do Departamento de Psicologia da FFCLRP/USP

 08/04/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 11/04/2022 as 14:32
Francirosy Campos Barbosa – Foto: Arquivo pessoal

 

No dia 2 de abril de 2022, isto é, no último sábado, a maioria dos muçulmanos no mundo entrou no mês do Ramadã, digo a maioria, pois há divergência com alguns países e grupos sobre o avistamento da lua nova. No entanto, no Brasil é Ramadã, e as comunidades islâmicas estão mobilizadas neste período que marca o jejum de comida, bebida e relações sexuais da alvorada ao pôr do sol durante 29 ou 30 dias (sendo o calendário islâmico lunar, a variação é sempre prevista). O mês do Ramadã foi um dos temas desenvolvidos na minha tese de doutorado – Entre arabescos, luas e tâmaras: performances islâmicas em São Paulo – defendida na USP em 2007, e do mesmo modo foi tema de documentário – Allahu Akbar – que também acompanhava a tese de doutorado e está disponível no Vimeo.

O ano de 2022 marca um período importante para os muçulmanos, pois nos últimos dois anos a comunidade muçulmana teve que fazer seu Ramadã de forma tímida, sem a presença das pessoas, com mesquitas esvaziadas, sem os costumeiros encontros para quebra de jejum (iftar) e orações de Tarawih. Se, por um lado, a pandemia de covid-19 dificultou a aproximação entre as pessoas, por outro lado, a tecnologia se colocou como grande aliada dos indivíduos que seguiram rigorosamente as políticas de distanciamento social. Como ferramenta de superação das barreiras espaciais, os aplicativos de chamadas e videochamadas tiveram grande engajamento durante o período de isolamento e seu uso foi reinventado para saciar as mais diversas necessidades, desde comunicação básica entre parentes e conhecidos às demandas do mercado e, também, das redes de cuidado da saúde mental.

Os espaços religiosos estavam nesse contexto e tiveram que se reinventar (Barbosa, 2021). O Ramadã está de volta a sua programação normal, mas manteve o uso de tecnologias de comunicação. É possível acompanhar pelo Facebook e canal do YouToube da Mesquita Brasil o início do jejum e a sua quebra via programa realizado pelo sheik Mohamed El Bukai e outros, além de páginas no Instagram dos sheiks Rodrigo Rodrigues, Sheikh Jihad Hassan Hammadeh e páginas da Associação Mundial da Juventude Islâmica (Wamy), tendo como presidente o sheik Ali Abdouni, e da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras), respectivamente. Há também a presença forte de influenciadoras digitais muçulmanas, como Fabiola Oliveira, Mariam Chami, Fatuma (Fala Fatuma), entre outras, que se revezam nas redes sociais falando sobre temas variados e, neste momento, abordam o mês religioso. Este ano novamente a polêmica sobre stickers (figurinhas que homenageiam o Ramadã) no Instagram, que foram criados para relembrar a data, mas que vêm sendo usados de forma indevida, reacendeu os comentários nas postagens chamando atenção ao real significado dessas imagens. A primeira figura simboliza o início do Ramadã (ou que estamos no mês do Ramadã); a segunda, a alimentação, que marca o sohour (alimento antes do início do jejum diário e/ou quebra de jejum com tâmaras e água); a terceira, a mesquita e a celebração noturna das devoções realizadas para o encerramento do dia.

Fotomontagem com símbolos do Ramadã – Arte: Jornal da USP

 

O Ramadã é o mês do Alcorão, a centralidade está nele, que é recitado o tempo todo, pois é o mês no qual o texto sagrado foi revelado. Este ano o período se mistura com a semana da Páscoa, período em que a USP tem suas aulas de graduação suspensas, no entanto, é importante chamar atenção que alunos, docentes e funcionários da Universidade têm outras práticas religiosas e espirituais, além dos rituais cristãos como Páscoa e Natal. A vida religiosa está presente também na vida acadêmica, como objeto de pesquisa, mas também como experiência vivida por muitos. O diálogo inter-religioso considera fundamental o contato entre as formas de pensamento religioso e também com os sem religião. A universidade, sendo plural, diversa, também deve compreender que há várias formas de ser e estar em sociedade. Pensando na divulgação de uma data pouco conhecida pela comunidade acadêmica, o Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias), coordenado por mim, abriu um espaço de divulgação dessa data – compreendemos que as diversas formas de intolerância e islamofobia, pelas quais vêm passando as muçulmanas (em sua maioria mulheres que usam véu) no Brasil, são fruto do desconhecimento e de poucos trabalhos acadêmicos que abordem o tema. Sugerimos que acompanhem nossa divulgação pelo Instagram @graciasgrupo.

Neste mês em que se celebra a Páscoa, muçulmanos experimentam o jejum e renovam sua fé e a caridade. Cabe considerar que num país laico como o nosso, que permite a livre observância de suas práticas religiosas, torna-se importante falar sobre a diversidade de experiências com o sagrado. No domingo de Páscoa, muitos estão preocupados com o almoço, com o bacalhau da ceia, enquanto os muçulmanos seguem seu jejum até o horário determinado, em torno das 18h, a depender da cidade em que vive. Se a diversidade está na sociedade, está também em muitas famílias brasileiras, que congregam cristãos, umbandistas e muçulmanos na mesma casa. O diálogo e o respeito com as práticas individuais e coletivas precisam estar na pauta também de famílias religiosas e não religiosas. A pesquisa que realizamos sobre islamofobia e que neste momento está sendo finalizada aponta que há muita intolerância em relação a um familiar muçulmano.

Esperamos que neste mês as duas denominações que mais crescem no mundo, a cristã e a islâmica, possam juntas promover a paz, o respeito e a solidariedade, consubstanciando os valores que carregam e ampliando uma cosmologia que dê sentido às pessoas e que estabeleçam espaço de troca. Nos cursos em que atuo, de Psicologia e Pedagogia, promovo frequentemente debates sobre experiências religiosas e suas formas de pertencimento, inserindo desse modo questões decoloniais que promovam reflexões sobre práticas dominantes e não dominantes quando se trata da escuta terapêutica e da formação de alunos em sociedade. Como espaços terapêuticos podem possibilitar a conversa sobre religiosidade/espiritualidade? Ou então: como espaços educacionais/escolares podem promover o acolhimento de crianças de religiões diferentes da maioria?

Por fim, desejo aos docentes, alunos e funcionários: Ramadan kareem (Ramadã generoso) a todos os muçulmanos e muçulmanas; feliz Páscoa a todos os cristãos; bom Pessach aos judeus; asè a todos os candomblecistas e umbandistas; paz a todos que não têm pertencimento religioso; e a todos que possuem outras formas de religiosidade/espiritualidade, meu respeito e atenção.


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