“Para o entendimento desta questão, há dois elementos fundamentais que devem ser levados em conta: o estado das técnicas e o estado da política.”
A história dos açudes no Nordeste é tão antiga como a própria história de sua colonização pelos portugueses. Na realidade, o próprio nome – açude – é derivado da palavra árabe as-Sadd, que significa barragem e comprova a origem ainda mais remota, se nos debruçarmos sobre a história do homem e das suas técnicas.
Encontramos notícias de grandes barragens de terra na Mesopotâmia, cerca de 3.000 a.C. Egito, Índia, China e Iêmen são alguns dos países onde existem barragens desde tempos imemoráveis. Há menção de grande obra realizada pelo rei Panduwaasa, em Sri Lanka, há 25 séculos, aproximadamente.
Entretanto, a engenharia de barragem só veio à luz nos meados do século 19, na França (Sazilly, 1858), e limitou-se ao estudo de represas construídas em pedra e/ou alvenaria. Já as técnicas de construção de barragens em arco, que se popularizariam quase cinquenta anos depois da construção do açude do Cedro, chegariam à cena com o clássico Les Barrages de Valleé, editado em Paris, em 1958, pela Dunod, traduzido do original alemão Stauanlagen Und Wasserkraftwerke, editado por Verlag Von Wilhelm Ernest & Sohn, em Berlim.
Por outro lado, os açudes já existiam no sertão, como parece comprovar uma das primeiras referências acerca do assunto, feita em 1706, pelo padre Manoel de Jesus Borges, que requeria terra para que “se mettam muitos gados e fazer assudes aonde houver capacidade”. A autoridade de Irineu Joffily corrobora, também, embora não cite dados precisos, com a hipótese de que alguns reservatórios foram erguidos no amanhecer do povoamento.
Para o entendimento desta questão, como de qualquer fase da história, há dois elementos fundamentais que devem ser levados em conta: o estado das técnicas e o estado da política. Há uma tendência a separar uma coisa da outra. Daí muitas interpretações da história a partir das técnicas. E, por outro lado, muitas interpretações da história a partir da política.
Na realidade, nunca houve na história humana separação entre as duas coisas. As técnicas são oferecidas como um sistema e realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de escolha dos momentos e dos lugares. É isso que faz a história.
Sediado no Rio de Janeiro e criado em 1862, o Instituto Politécnico funcionou, primordialmente, como um fórum para os principais debates sobre ciência e engenharia nacional. Aos participantes cabia propor, analisar e dar pareceres acerca dos principais problemas e soluções estruturantes do país.
A instituição – em grande medida – era utilizada pelo governo imperial sempre que precisava legitimar seus objetivos e ações. A influência do instituto e, principalmente, a envergadura do seu corpo técnico era solicitada quando se fazia necessária a defesa das resoluções de caráter eminentemente técnico, tais como construção de portos, ferrovias e obras de saneamento.
O costume em recorrer aos discursos das soluções por meio dos pareceres técnicos e das soluções “ditas” puramente técnicas, no Brasil, vem desta época, como se fosse possível – de alguma forma – separar-se a técnica e a política ou a política e a técnica, independentemente da ordem em que elas apareçam.
Com o objetivo de resolver os problemas advindos da seca e os seus efeitos nos sertões nordestinos, notadamente na Província do Ceará, o Império solicitou auxílio do Instituto Politécnico Brasileiro, por meio dos seus participantes, que realizaram quatro sessões especiais nos dias 9, 18, 23 e 30 de outubro de 1877, para discutir as possíveis soluções técnicas – necessárias e urgentes – visando debelar os problemas causados pelas secas e seus resultados.
Caberia, por assim dizer, àqueles homens ilustres a resolução de todos os problemas relacionados à seca, através dos seus conhecimentos científicos e técnicos, levando o benefício das luzes do saber para os irmãos do Norte. A seca, tal como fenômeno climático de âmbito nacional, já havia sido até aceito como natural e regional, mas tornou-se um problema gigantesco que deveria ser resolvido rapidamente.
Consta na Ata da sessão do dia 18 de outubro de 1877, iniciada às 19 horas, que entre os ilustres presentes na reunião estavam o conde d’Eu, João Martins da Silva, Coutinho, Buarque de Macedo, Beaurepaire Rohan, André Rebouças, Pimenta Bueno, Vieira Couto e Paula Freitas e Carlos da Luz.
O presidente do Instituto Politécnico Brasileiro, o conde d’Eu, começou a reunião, afirmando o seguinte:
Todos sabem que nossos irmãos do Norte acham-se sob o flagelo de uma terrível seca, que, infelismente já há feito muitas vitimas; que o Instituto, convidando as pessoas mais ilustres e mais conhecedoras das circunstancias especiais das províncias assoladas pela seca, espera o concurso de suas luzes para resolver um problema, não só da maior urgência neste momento, como digno de todas as atenções daqueles que se interessam pelo progresso de nossa pátria. [sic]
O engenheiro Barroso, que não estava presente nesta reunião, mas enviara uma carta para que fosse conhecida a sua opinião, defendia a edificação de reservatórios, pois:
Na construção de açudes em grande escala está o principal remédio ao mal. Direcionava a responsabilidade pela construção dessas obras públicas aos governantes, pois “a província do Ceará deve ter um serviço especial de açudes, assim como a Holanda tem seu serviço de diques.”
Desse modo, o Governo Imperial auxiliaria os fazendeiros e pequenos proprietários de terras, fornecendo-lhes minuciosas instruções acerca da construção de açudes, formas e dimensões das muralhas, comportas, sangradouros, etc., e estabeleceria um prêmio pecuniário, baseado na superfície d’água criada, o qual seria pago com prontidão e boa vontade a todo proprietário que construísse açudes em suas terras”.
João Martins Coutinho foi outro que defendia a construção de
Grandes açudes de uma a duas léguas de extensão, que serão considerados como centros de abastecimento, sendo para esse fim, escolhidas localidades convenientes, e tendo o mesmo percorrido a província do Ceará, quando fez parte da Comissão Cientifica enviada à mesma província, reconheceu alguns pontos apropriados à construção desses melhoramentos”, citando Quixeramobim como uma dessas localidades apropriadas.
Considerando-se exímio conhecedor das regiões cearenses – por ter participado da Comissão Científica que estudou várias localidades do Ceará, entre 1859 e 1861 –, indicava a edificação de grandes açudes, por inúmeras paragens sertanejas. Acreditava que, através desses reservatórios em áreas determinadas, seria possível resolver os problemas relacionados às localidades circunvizinhas também.
Na última sessão extraordinária, realizada no dia 30 de outubro de 1877, os membros do Instituto Politécnico encaminharam as propostas ao Governo Imperial, com o propósito de que as mesmas fossem executadas com a maior brevidade.
Dentre as propostas analisadas, que deveriam amenizar os males causados pelas secas ou prevenir meios futuros, dois modelos de intervenção sobrepujaram-se: os açudes, com canais de irrigação e as estradas de ferro. Caberia aos engenheiros, a partir dos seus conhecimentos técnicos e científicos a execução dessas obras públicas que transformariam, definitivamente, a paisagem do sertão e as vidas dos sertanejos.
Os estudos e alguns projetos foram idealizados pela comissão de engenheiros, mas não puderam ser concretizados durante a seca de 1877-1879. Havia vários problemas relacionados ao setor financeiro, sendo inúmeras as reclamações dos governantes locais perante a escassez de verbas para solucionar as dificuldades climáticas.
Em 14 de fevereiro de 1879 foi organizada a Comissão de Açudes, que tinha como regulamento o seguinte:
Estudar na Provincia do Ceará a conveniencia de se fazerem açudes em represa d’agua, à vista da natureza e disposições do solo para facilitar a irrigação nos logares de plantações, e estabelecer depositos que sirvam de attenuar os effeitos da secca; (…) indicar os lugares mais apropriados para os ditos açudes e depositos, e a natureza das obras a construir. [sic]
A responsabilidade pelo comando da respectiva Comissão de Açudes foi direcionada ao engenheiro inglês Jules Jean Revy. Este se incumbiu primordialmente de estudar as regiões propícias à construção de açudes e reservatórios, produzindo pareceres e projetos. As áreas selecionadas foram Boqueirão de Lavras, Boqueirão de Arneirós, Boqueirão de Quixeramobim e finalmente “o açude conhecido pelo nome de Sitiá” (Quixadá). Esses eram os locais indicados para a edificação das obras de açudagem, seguindo-se outros ao norte da província. As instruções da comissão ressaltavam ainda que:
Os estudos se dividirão em reconhecimentos e explorações; aquelles para se julgar das condições provaveis locaes e fornecer os elementos de comparação e determinativos da preferencia, e estes para, resolvida preferencia, habilitar ao perfeito conhecimento das localidades preferidas e a organização dos projetos definitivos dos reservatórios.
Nos reconhecimentos se colligirá cuidadosamente todos os dados que interessem à praticabilidade, economia e effeitos uteis dos reservatórios de que convenha dotar as localidades, mencionando-se a importancia numerica e agricola ou industrial das respectivas populações, e os recursos naturaes aproveitaveis na execução das obras. [sic]
O engenheiro Revy, juntamente com um ajudante e um desenhista, tinha a obrigatoriedade de adentrar diversas regiões do Ceará, no intuito de reconhecer os locais mais indicados à açudagem, fazendo comparações e determinando preferências. E apesar de já possuir dados científicos de Quixeramobim e Quixadá, colhidos pela extinta comissão de engenheiros, deveria realizar um estudo meticuloso e detalhado desses territórios e dos outros. Prezava-se primordialmente pela realização de obras públicas com baixos custos para os cofres governamentais e que, concomitantemente, auxiliassem o desenvolvimento comercial e tecnológico das localidades.
As primeiras regiões estudadas pelos integrantes da Comissão de Açudes foram o vale do Jaguaribe, Aracati, Boqueirão de Lavras, Icó, Limoeiro e Russas. Estudou-se a topografia, a flora, a fertilidade do solo, os recursos hídricos e as culturas praticadas nas localidades, levantando-se ainda dados sobre a população e o comércio. A proposta era descobrir quais os locais mais indicados para a construção de represas e reservatórios, que amenizariam os efeitos das inundações ou das estiagens.
Além disso, havia o objetivo de construírem-se canais de irrigação que possibilitariam mais fertilidade à terra e o aumento da produtividade agrícola. Os homens teriam água em abundância para plantarem, independentemente das estações climáticas do ano. Aliás, dr. Revy considerava que:
A introdução de obras de irrigação modernas nos férteis planos dos valles da província mudaria completamente a situação. Introduziria os progressos da agricultura moderna, e substituiria a pobre e obsoleta cultura actualmente praticada, mudaria os costumes e o modo de vida do povo.
A irrigação proporcionaria mudanças significativas e seriam introduzidas novas técnicas no preparo do solo, assim como máquinas e equipamentos modernos que facilitariam o plantio e a colheita. “Mudar esse hábito possibilitaria maior produção agrícola, aumento do movimento commercial e melhoria nas condições de vida das pessoas. [sic]
Para atingir o progresso, conforme entendiam os engenheiros da época, precisariam necessariamente construir açudes e canais de irrigação no interior do Ceará. Eles acreditavam que, através do avanço da irrigação, seria possível modificar a paisagem e, sobretudo, as vidas das pessoas. Os principais projetos de açudagem, idealizados nos idos de 1880, foram os açudes de Itacolomy, de Lavras e de Quixadá.
O primeiro localizar-se-ia entre as cidades de Granja e Viçosa (zona norte do Ceará), tendo 30 metros de altura e um volume 192.653.000 m³, com custo de 1.400:000 contos de réis. Conseguiria irrigar ainda 2 mil hectares de terras, que poderiam ser utilizadas para a plantação de arroz, feijão, milho, algodão, forragem para o gado, dentre outros.
O segundo projeto direcionava-se para o represamento do Rio Salgado, cujas águas poderiam irrigar todo o Vale do Jaguaribe até a cidade de Aracati. Possuiria 40 metros de altura, atingindo um volume de 180.000,000 m³ de água, sendo orçado em 5.663:000 contos de réis.
Essas grandes construções, localizadas em pontos estratégicos do Ceará, revolucionariam a vida dos habitantes, proporcionando o desenvolvimento da agricultura, do comércio, da pecuária e, por conseguinte o desenvolvimento das cidades. O estigma de atrasado, de retrógado e de selvagem seria eliminado do sertão, transformando-o em uma potência agrícola nacional.
Depois de concluído o estudo no Itacolomy e no boqueirão de Lavras, restava estudar o Quixadá, localizado no Sertão Central do Ceará. Os estudos anteriores executados pela Comissão Científica e pela Comissão de Engenheiros já haviam analisado os potenciais hídricos e econômicos do lugar, que se notabilizava por uma economia centrada na produção algodoeira e pecuarista.
Para a concretização do estudo foram contratados mais dois engenheiros, com trabalhadores e capatazes para formar as suas turmas. A fertilidade do solo era fator de exaltação, bem como os potenciais agrícolas que seriam introduzidos através da irrigação. O objetivo era represar o Rio Sitiá, nele se construiria uma barragem com capacidade hídrica de 135.500.000 m³, custando cerca de 900:000 contos de réis.
As exaltações feitas pelo engenheiro Revy e, principalmente, o menor custo, possibilitaram a escolha do projeto de açudagem de Quixadá. Existem, contudo, outras explicações. Na concepção do engenheiro Thomaz Pompeu Sobrinho, a decisão foi pautada na proximidade da região em relação à Fortaleza, “de onde deviam partir os principais recursos e meios para a grande obra”.
Mas a influência de alguns políticos também endossou essa resolução. Isso é perceptível pelas palavras do intelectual João Brígido:
A açudagem do Ceará, que foi propaganda minha na imprensa com o senador Pompeu, antes de todo mundo, tive a satisfação de impulsionar, quando deputado. O açude do Quixadá, que lembra ainda Pedro II, foi-me indicado pelo Sr. José Jucá.
Diretamente, apresentei a ideia ao então ministro Buarque, numa memória, que me pediu, sobre os pontos açudaveis, isto para informar ao Imperador.
Quando exercia o cargo de deputado, João Brígido indicou ao ministro da Agricultura, dr. Buarque de Macedo, os locais propícios para a construção de açudes. E sob a indicação do presidente da Câmara Municipal de Quixadá – José Jucá de Queiroz Lima – o sertão de Quixadá foi escolhido.
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