A transdisciplinaridade é frequentemente confundida com a interdisciplinaridade, que se refere à integração de conhecimentos de diferentes disciplinas acadêmicas para alcançar um objetivo comum. No entanto, a transdisciplinaridade vai além: ela não apenas inclui a interdisciplinaridade, mas também incorpora saberes, práticas e conhecimentos “não acadêmicos” — aqueles que não são necessariamente validados pelas normas científicas convencionais. Esse enfoque busca promover uma colaboração mais ampla e inclusiva para encontrar soluções conjuntas e criativas para os grandes desafios da atualidade. Ao integrar uma diversidade de participantes (como cientistas, gestores públicos, lideranças locais e atores da sociedade civil), a ciência transdisciplinar e engajada possibilita o aprendizado social e a criação de novos conhecimentos que sejam cientificamente confiáveis, socialmente robustos e que contribuam para uma mudança positiva no contexto social, econômico e/ou ambiental.
Iniciativas com esta abordagem estão se multiplicando e mostrando o seu potencial transformador. No Estado de São Paulo, um exemplo é dado pelo Biota Síntese, um centro de pesquisa, financiado pela Fapesp, voltado para o planejamento de soluções baseadas na natureza para o enfrentamento de desafios socioambientais. Este centro, coordenado conjuntamente entre academia (USP) e governo (Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de São Paulo), reúne pesquisadores, representantes dos governos municipais e estadual, e membros de organizações não governamentais para abordar uma série de desafios cruciais. Entre eles, destacam-se a implementação do mercado de carbono no Estado de São Paulo, a promoção de uma restauração florestal economicamente viável para os proprietários de terras e socialmente justa, a valorização dos serviços de polinização como parte de uma produção agrícola mais sustentável e o fortalecimento da resiliência e capacidade adaptativa das cidades frente aos eventos extremos resultantes das mudanças climáticas.
Os impactos deste centro já se manifestam de forma concreta, contribuindo diretamente para a formulação e implementação de políticas públicas ambientais. Exemplos notáveis incluem contribuições para o programa estadual de restauração de ecossistemas (ReflorestaSP), o Plano de Ação Climática e o recém-lançado mecanismo de financiamento climático do Estado (Finaclima, Decreto Estadual 68.577/2024) Essas iniciativas demonstram como os resultados dos estudos conduzidos, dentro da perspectiva transdisciplinar, estão sendo aplicados para enfrentar desafios socioambientais e promover a sustentabilidade em larga escala.
Um artigo recentemente publicado na revista Perspectives in Ecology and Conservation explora os desafios envolvidos no processo de pesquisa transdisciplinar e aponta caminhos para fortalecer e ampliar o impacto dessa abordagem. Entre os aprendizados adquiridos, destaca-se a importância de trabalhar em colaboração desde o início do processo de investigação científica. A abordagem tradicional, que posiciona a academia como única geradora de conhecimento e soluções, tem se mostrado limitada. Muitas vezes, o conhecimento produzido em um ambiente acadêmico desconectado da sociedade não atende às necessidades práticas de tomada de decisão nem oferece soluções viáveis.
Fica evidente também a necessidade de engajamento ativo tanto do poder público quanto da academia na interface entre ciência e sociedade. É fundamental valorizar a pesquisa com impacto societal no mundo acadêmico, ou seja, esforços que promovam mudanças na sociedade (nas normas sociais, na governança e nas instituições), assim como reconhecer a importância do tempo investido por gestores públicos e agentes governamentais em parceria com pesquisadores na cocriação de soluções.
Para conectar de forma mais eficaz os esforços acadêmicos às demandas da sociedade, é indispensável contar com profissionais capacitados que facilitem as interações e potencializem a inclusão de diferentes saberes e perspectivas, relacionando capacidades científicas e outras formas de conhecimento a problemas do mundo real. Esses profissionais devem compreender os tempos, dinâmicas e desafios envolvidos tanto no processo de produção do conhecimento científico, como nas práticas concretas e nos arranjos institucionais que governam as relações entre Estado e cidadãos.
A criação de espaços formais para diálogo, discussão e cocriação de conhecimentos acionáveis voltados às soluções dos grandes desafios atuais ainda é uma prática rara. Alguns governos já contam com profissionais especialmente contratados ou designados para atuarem na interface entre a ciência e a gestão pública, como os chief scientists na Austrália, science policy analysts nos Estados Unidos ou iniciativas similares em outros países. Alguns grupos de pesquisa universitários e organizações não governamentais acabam assumindo esse papel, porém de forma parcial. As agências de fomento têm incentivado que arranjos de coprodução transdisciplinar se estabeleçam em projetos por elas financiados, a exemplo da Fapesp nas chamadas mais recentes de programas como Biota, Políticas Públicas e Ciência para o Desenvolvimento.
No entanto, ainda falta a criação de “organizações de borda” ou “organizações de fronteira” – estruturas dedicadas exclusivamente à integração entre academia, governo e sociedade. Essas organizações podem estar vinculadas a centros de inovação universitários, ou fazer parte da estrutura formal do governo ou até ser independentes, como no caso das Organizações Sociais. Em todos os casos, elas têm como foco (ou potencial) promover interações de maneira horizontal, simétrica e inclusiva, facilitando a cocriação de soluções baseadas em ciência, socialmente relevantes e aplicáveis na prática. Iniciativas nesse sentido são não apenas necessárias, mas urgentes, embora ainda pouco exploradas, no Brasil e no mundo.
* Especialista ambiental na Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo
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