Por que os Jogos Olímpicos já não são assim tão desejados

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da USP e membro da Academia Olímpica Brasileira

 03/04/2019 - Publicado há 5 anos

[Este texto inaugura a coluna Esporte e Sociedade, com que passo a colaborar quinzenalmente neste Jornal]

Katia Rubio – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

 

Alguns fenômenos contemporâneos grandiosos guardam parte de uma história marcada por dificuldades e quase fracasso. Os Jogos Olímpicos são um deles.

Na atualidade os Jogos Olímpicos, principalmente de verão, são considerados um dos maiores espetáculos do planeta. Um evento capaz de mobilizar público presencial, espectadores de emissoras de TV aberta e de mídias digitais, e, principalmente, patrocinadores globais, como nenhum outro. Os cinco anéis entrelaçados são uma das marcas de maior valor agregado do planeta porque, em tese, carregam aquilo que há de mais utópico no esporte: valores, a celebração da paz e o congraçamento entre os povos.

Durante décadas esse discurso mobilizou atletas, instituições e governantes em torno do desejo de ter em seu território uma competição que representava a síntese de um ideal humano. Entretanto, parece ter chegado o momento de rever todo o processo que levou o Movimento Olímpico a uma encruzilhada.

Criado no final do século XIX para ser uma competição de caráter internacional, os Jogos Olímpicos foram prontamente chamados à sua terra natal, a Grécia. Parecia óbvio que os gregos do presente devessem realizar em seu território a mesma celebração de séculos passados. Porém, não era essa a ideia de Pierre de Coubertin, que entendia que os Jogos Olímpicos da Era Moderna deveriam ter um caráter internacionalista e para tanto deveriam ser realizados em países diferentes, multiplicando assim seu ideal. E assim, depois da primeira edição realizada em Atenas, os Jogos Olímpicos passaram a circular entre cidades que dispusessem de condições materiais suficientes para abrigar algumas centenas de atletas, vindos de vários continentes. A Europa, como centro do “mundo civilizado”, era inegavelmente o lugar certo para essa realização.

O processo de postulação e seleção das sedes na fase de estabelecimento dos Jogos Olímpicos não era simples. A infraestrutura necessária demandava acordos com organizadores que deveriam promover obras fundamentais à realização das competições. Cedo percebeu-se que sem o apoio do poder público local isso era inviável.

Quando Coubertin entendeu ser essencial uma aproximação com o continente americano, teve início a disputa entre cidades para sediar os jogos. Em 1904 Chicago e Saint Louis lutaram pelo direito de realizar aquela que seria a primeira edição olímpica fora da Europa. Desde então o processo de postulação e escolha da cidade olímpica envolveu inúmeras estratégias de cidades e governantes, em processos que demoravam anos. Algumas escolhas foram realizadas em assembleias, com inúmeras rodadas de negociação, outras foram definidas por votos enviados por correio, quando ainda as comunicações não eram realizadas a distância, em tempo real.

Essas disputas ganharam destaque e importância à medida que os Jogos Olímpicos se tornaram um evento grandioso, e um palco no qual se descortinavam embates, principalmente durante a fase de estabelecimento (de 1920 a 1936) e durante a Guerra Fria (de 1948 a 1984). As competições já não eram apenas um palco de realização para atletas e países mostrarem sua excelência atlética, mas também se transformaram em um campo de disputa política e econômica e demonstração de força e poder. Sediar os Jogos Olímpicos significava estar no centro das atenções mundiais e participar de um seleto grupo de países capazes de suportar as demandas de um evento de tal magnitude.

Com a agilidade de um transatlântico, [o COI] passou a tomar medidas de longo prazo. Conseguiu aproveitar a disputa entre duas grandes cidades para definir as sedes de 2024, em Paris, e 2028, em Los Angeles

As teses econômicas básicas sobre demanda e oferta explicam o que acontece quando há oferta demasiada. Aquele que detém o poder da compra tem margem para barganha e, portanto, é capaz de impor os limites da negociação de seu produto. Essa foi a lógica que mobilizou a escolha das sedes olímpicas nas últimas décadas. Poder público associado à iniciativa privada de companhias de porte global e local transformaram as postulações em espetáculos que pareciam mesclar a dinâmica de leilões com velhos acordos nupciais. Nos processos de postulação podiam ser encontradas desde descrições pouco realistas de equipamentos públicos a promessas de legado impossíveis de serem cumpridas. Diante da possível realização de grandes negócios, chefes de Estado passaram a se envolver pessoalmente no processo de conquista de votos, posteriormente entendido como imoral e ilegal, levando a renúncias e prisões.

Ou seja, com o passar do tempo o encanto olímpico transformou-se em maldição. Casos como de Atenas, em 2004, e Rio de Janeiro, em 2016, tornaram-se referência de exemplo a não ser seguido por cidades com planejamento participativo e responsabilidade pública. Não é de estranhar, portanto, que cidades como Calgary, que já havia realizado os Jogos de Inverno de 1988, rejeitou a proposta de novamente sediar a competição, seguida de outras cidades como Roma, Innsbruck, Munique, todas elas ex-olímpicas, bem como Boston, Cracóvia, Oslo e Graubünde. Em várias dessas cidades houve consulta popular e prevaleceu o não. Curiosamente são cidades de países cujo sistema democrático é estável. Destaque-se ainda que o maior porcentual de rejeição vem das mulheres.

Atento aos sinais, o COI agiu. Porém, com a agilidade de um transatlântico, passou a tomar medidas de longo prazo. Conseguiu aproveitar a disputa entre duas grandes cidades para definir as sedes de 2024, em Paris, e 2028, em Los Angeles. Com isso ganhou fôlego para compreender e alterar as regras para a década de 2030. Por outro lado, as sucessivas renúncias para os Jogos de Inverno empurraram a competição para países totalitários, como a China, ou para sedes conjuntas como é o caso de Milão e Cortina d’Ampezzo, modelo ainda pouco testado.

Os Jogos Olímpicos deixaram, por sua vez, de ser objeto de desejo e passaram a ser objeto de repulsa, acionando assim um alarme prontamente ouvido.

Rejeição é aquele sentimento considerado uma ferida psicológica cuja representação maior é a sensação de não pertencimento, de vazio. A dor decorrente desse sentimento pode ser entendida como uma ferida psicológica semelhante a cortes ou pancadas que machucam e penetram a carne. Parecia improvável, décadas atrás, que isso pudesse acontecer com os Jogos Olímpicos. Porém, o previdente presidente do COI, Thomas Bach, já demonstra ter sentido o golpe. Formou um grupo de trabalho para discutir e compreender o significado do movimento da população dessas cidades e buscar saídas. Anunciou a flexibilização do processo de candidaturas futuras e disse estar atento às mudanças sociais.

Isso talvez possa significar mais respeito e menos arrogância. Depois das últimas experiências olímpicas nas quais as imposições eram tantas que chegavam a ferir, inclusive, a soberania nacional, parece haver a compreensão de que determinações verticalizadas levam a um esgotamento de relações. Embora o Movimento Olímpico pareça estar alocado em uma nuvem e manifeste com frequência sua isenção política e autonomia, ele depende inteiramente das sociedades situadas em cidades e países que vivem as mazelas da política e economia locais. É tempo de atentar para essa dura realidade e aprender a arte de negociar e não apenas determinar. É cada vez mais claro que o mundo hoje está atento a essa sutileza.

 


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